A cada bela impressão que causamos,
conquistamos um inimigo.
Para ser popular é indispensável ser
medíocre.
O.W.
Subi no ônibus, passei pela roleta e
sentei num banco dividindo o espaço com um jovem que usava um lenço na cabeça
que numa primeira impressão pensei ser uma moça. Vi que ele estava inquieto e
olhava para fora e olhava para mim. Uma ou duas vezes você tolera, mas quando
se torna repetitivo aborrece.
- Alguma coisa o incomoda, amigo? – Perguntei.
- Ah, desculpe-me, não é nada... –
Respondeu o jovem, mas eu sabia que não pararia ali, pois pude perceber as
reticências em sua fala.
- Sabe o que é? – Voltou ele com
mais determinação, apesar de ser uma pergunta.
- Não, não sei o que é... – Respondi
de forma indiferente deixando bem explícita as reticências. Para muitos, as
reticências são fugas para conversas com estranhos, mas para o jovem que
dividia o banco do ônibus comigo, não. Elas eram convites para ele derramar
sobre mim todas suas inquietudes.
- Eu sou escritor, sabe? Escrevo
poesias, contos e estou escrevendo um romance, sei lá, talvez um conto grande.
O senhor gosta de ler? – Perguntava agora dando uma analisada em mim.
- Sim, gosto de ler algumas coisas. –
Respondi de forma vaga, pois o olhar do jovem agora era de afronta, bem, pelo
menos, me parecia.
- Tá bom, então vou te pedir um
favor, posso?
- Sim, eu acho... – Rendi-me com
certa dúvida.
- Leia esse poeminha que escrevi
aqui no ônibus e veja se gosta. – Mostrou-me um papelzinho amassado e pude ver
suas unhas grandes e pintadas. A letra era bonita e seguia o ritmo dos versos.
Não havia rimas, mas era harmônico. Li com rapidez e reli. Percebia que o jovem
dava um sorriso cínico.
- O que foi? – Perguntei colocando o
máximo de severidade na voz.
- Calma, eu entendo por que releu. É
o ritmo, não? – Disse com certo orgulho e prepotência. Ele sabia que era bom,
mas precisava do sentimento dos outros. Ele precisava ver a reação das pessoas
diante de suas letras. E sem que eu dissesse, ele emendou: - Sim, preciso do feedback. Quem escreve, escreve para
alguém ou para todos, não? Bem, não escrevo para todos e acredito que ninguém
consiga isso, mas sei que escrevo algo interessante, concorda? – Perguntou retoricamente
e não respondi.
- Tá bom, e daí, o que te incomoda? –
Perguntei tentando ser o mais indiferente possível e não aumentar mais ainda o
ego do jovem.
- O que me incomoda? Ainda não
percebeu? O senhor me parecia uma pessoa inteligente. Percebi isso desde a hora
que o vi correndo para pegar o ônibus. Disse a mim mesmo: “se aquele sujeito
que me parece uma pessoa razoável sentar ao meu lado saberei que é com ele que
tenho que falar”. Daí, você se sentou ao meu lado, não percebe que tudo isso
foi armado por uma força maior do que nossas intenções e vontades? – Falava agora
de forma livre e apressada.
- Bem, as impressões podem
enganar... – Disse tentando aliviar a tensão que via sair de sua respiração.
- Sim, as impressões, mas me refiro
ao destino. Não falo de poesia, mas de ciência, mesmo, sabe? – Concordei com a
cabeça.
- Eu sou gay. – Confidenciou-me o
rapaz.
- E? – Dei-lhe a chance de
dissertar.
- E... tudo que escrevo é sempre
considerado contra alguma causa. Um poema meu já foi julgado homofóbico. Como?
Sou gay, pô! Um conto considerado pornográfico e eu falava de amor. O senhor
não sabe o que é ter sua arte recusada, julgada de maneira errada por gente que
não sabe escrever um parágrafo! – Falava com certa raiva, mas sem levantar a
voz. Talvez por que não queria que as pessoas o ouvissem ou era possuidor de
uma habilidade rara.
- Bem, isso não acontece só contigo.
Você escreve bem, deve continuar. – Tentei dar um conforto.
- O senhor conhece Wilde? – Agora sua
voz embargava.
- Sim, mas... – Sem deixar eu
terminar, emendou: - Pois é, então, me sinto um Wilde pós-moderno. Mas eu sei
que sou melhor que eles, do que aqueles que me julgam e eles me julgam por
inveja. Não aceitam um indivíduo desprovido de causas e bandeiras. Eles não
suportam isso. Dizem que você tem que ser engajado, ir para as ruas, quebrar
lojas, vandalizar o sistema. Eu tô cagando pra isso, entende? Quero apenas
escrever, pô! Se eu conhecesse um lugar onde as pessoas podem ser elas
mesmas... – Falava agora com certo cansaço, recostou a cabeça na janela e
calou-se.
Dali em diante mais nenhuma palavra,
apenas o silêncio. Um ponto antes do meu me despedi, ele apenas virou os olhos
e retornou a cabeça para a janela. Mudo. Desci e esperei o ônibus seguir para
vê-lo de novo e quando sua janela passou por mim pude ver seus olhos fixos num
vazio, num vazio aterrador.