Chegara ao Café bem mais cedo que ela. Esperava.
Enquanto esperava, observava as pessoas que frequentavam o Café. Viu um grupo
barbudo sentado numa mesa redonda, todos carregavam livros. Viu um outro grupo
composto por homens de terno e cada um com diversas Bíblias. Um grupo mais
humorado composto por torcedores de um time de futebol. O Café era um
microcosmo. Um bom lugar para se observar o comportamento humano, o fluir das
ideias. Estava numa mesa para duas pessoas e conseguia acompanhar o desenrolar
das três reuniões. E ficou ali esperando por ela, rabiscando seu bloquinho.
Quando ela chegara, o Café já estava vazio. Apenas os
dois. A luz baixa. Tocava um jazz antigo. O microcosmo se tornou um local
reservado. Ele e ela.
- Já está aqui há muito tempo?
- Sim.
[ Ela
sabia que ele gostava de chegar bem cedo e poder gozar da solidão para pensar.
Ela achava aquilo estranho, estar sozinho na multidão para pensar ]
- Estava cheio mais cedo?
- Sim, estava.
- E o que você observou?
- O mesmo de sempre.
[
Ela sabia que ele esperava a pergunta. Era um ritual. Ela perguntava e ele
começava a falar suas impressões. Ela se sentia uma cobaia de laboratório e ele
sempre ria quando ela dizia isso ]
- Tá, o que você viu dessa vez?
- Ah, três grupos que resumem bem quem somos.
- Sei.
- Sério. Quer ouvir?
- Sim, amor. Anotou alguma coisa nesse bloquinho?
- Não, apenas rabiscos.
- Tá, então diz.
- Cheguei aqui bem cedo como de costume. Chegou um
grupo de homens barbudos com muitos livros. Era um grupo de estudos econômicos
e políticos. Todos eram marxistas.
- Pelas barbas?
- Não, pelos livros e ideias. [ continuou ] Eles
falavam alto. Sabe quando alguém quer ser ouvido pelas pessoas que estão
próximas, mas não fazem parte da conversa? [ ela concordou com a cabeça ] Então,
era isso. Começaram a discutir. Um era mais democrata, outro mais autoritário,
outro mais intolerante. Todos marxistas, entende?
[ ela permanecia em silêncio confirmando com a cabeça
] O grupo religioso não era diferente, todos cristãos. No entanto um dizia que
Deus salvaria todos, outro dizia que não, mas apenas os eleitos, um outro dizia
que fora da Igreja não haveria salvação. Todos cristãos, entende? [ ela sabia
que ele gostava da repetição, era professor ] O grupo dos torcedores a mesma
coisa. Um dizia que a melhor época do time foi o passado, outro dizia que era o
presente e um outro dizia que os dois haveriam de ver a glória do time no
futuro. Todos torcedores do mesmo time. Isso é lindo, não acha?
- Sem dúvida, amor.
- Podemos fazer parte do mesmo grupo e ainda assim
discordarmos de pontos importantes. Podemos ter as mesmas crenças, mas nos
desviarmos de uma ideia ou outra. Podemos torcer pela mesma coisa, mas com
compreensões bem diferentes.
- Tá, mas onde fica a verdade nisso tudo?
- Verdade, meu amor? Ninguém busca a verdade, todos
querem acreditar. Isso não só acontece com esses três grupos, mas com todos.
- Então, estamos todos perdidos?
- Não, não diria isso. As ideias são nossos
passatempos, são aquilo que nos tira do tédio. E eis o milagre, meu amor, não
há duas cabeças que pensam cem por cento iguais, sempre haverá um ponto de
discórdia, de não alinhamento, entende?
- Sei, acho bem legal essa ideia, mas...