domingo, 30 de abril de 2017

Indecisão


arte de Alex Grey





- Qual era o problema do texto dele?

- Nenhum.

- E por que não foi publicado?

- O problema era ele, o autor. Ele sempre enviava seu manuscrito a um revisor, mas o seu caráter desconfiado sempre o fazia revisar a revisão do revisor. Daí, se alguma coisa fosse mexida ou mudada e fizesse sentido, obrigava-se a refazer todo o texto.

- Mas eu o conheço. É um sujeito bastante culto.

- Sim. Mas o que você quer dizer com isso?

- É que me estranhava nunca ter escrito nada. Nem mesmo um conto ou um ensaio. Conversei com ele certas vezes e vi que era homem de ideias originais. Lembro ter falado com Carolina: “Sabe aquele sujeito? Culto! Certamente deve estar escrevendo algo de peso. Com tanta cultura e ainda não ter nada publicado, deve ser por não se simpatizar com coisas pequenas.”

- Você acha? Tive um professor assim também de grande cultura, mas jamais escrevera algo criativo. No máximo artigos acadêmicos, eu acho.

- Mas Carolina, esse homem fala como um poeta!

- Talvez seja um Dante! Talvez esteja escrevendo a História do Mundo em versos!

- Deixa de ironia, você me entendeu.

- Lembra do Tarcísio?

- O do mestrado?

- Sim. Ele também falava como poeta. Ficou um tempo sumido e depois apareceu com aquele texto sobre os deuses da mesopotâmia. Quando o encontrei, depois de ter lido o volume sobre Javé, ele me disse: “Precisava de tempo, Carolina. Só a solidão absoluta para se criar algo absoluto!”

- Sei, mas você foi para aonde?

- Fui às montanhas. Em Davos.

- Por causa de Mann?

- Não, por causa de mim.

- Sentiu saudades?

- Sim, principalmente de você. Continua bela. Adoro sua cor. Sua voz. Você ainda pode ser minha?

- É, parece que você ficou uma eternidade nas montanhas. Perdeu a mudança dos tempos, hoje não se possui mais mulheres.

- Ah, então voltarei às montanhas!

- Não seja bobo. Adorei o Javé.

- Ora, tornou-se uma crente?

- Nada disso, idiota! Adorei de admirar!

- Eu sei. Adoro seu rosto vermelho quando se zanga.

- Tá, mas fala sério.

- Sim, subi as montanhas por causa de Mann e quis também escrever minha mágica. E as montanhas sempre foram as casas dos deuses, não? Olimpo, Sião…

- Por isso você usou uma linguagem poética?

- Sim, religião é poesia! Lembra do professor Estevão? Ele dizia: “O discurso religioso que não se expressa poeticamente é discurso racional e se orienta pela razão e não pela fé, pelo mito. Dessa forma, não se pode fazer religião de maneira racional, mas somente poeticamente”

- Professor, dessa forma retiramos qualquer vestígio de verdade da religião, não? Ela se reduz a meras ilustrações e parábolas para orientar a vida.

- Sim. A religião que almeja algo além disso deixa de ser religião e se torna filosofia ou teologia. Pois precisará se apoiar em categorias racionais.

- Entendo. Desculpe-me, mestre, mas gostaria então de saber a sua opinião sobre os religiosos fundamentalistas que interpretam suas religiosidades como verdades irrefutáveis.

- Sim. Para isso eles precisam de argumentos racionais, não?

- Sim, certamente.

- Então, até mesmo eles quando afirmam a verdade religiosa estão ao mesmo tempo dizendo que essa verdade precisa do apoio da razão, ou seja, daquilo que não pode ser encontrado na própria religiosidade. Por isso são obrigados a sair dos templos e das lendas e entrar nas bibliotecas dos ímpios em busca de elementos não-religiosos para dar sentido aos seus mitos.

- Isso no mínimo é irônico, mestre!

- Eu diria contraditório. A religião sem poesia se torna contraditória. A religião só tem sentido na linguagem fantástica da poesia. Mas é preciso que os religiosos entendam que suas religiões são apenas uma visão fantástica da realidade e não a realidade mesma.

- Entendi, mestre. Como os fundamentalistas e piedosos creem que o discurso religioso deles é revelação da realidade em si, abandonam a poesia e se aventuram na linguagem filosófica criando mais confusão do que já existe na própria poesia religiosa.

- Sim. E o precursor desse exercício foi Platão e seus discípulos mais espiritualistas. A propósito, terminei agora um breve ensaio que trata desse assunto e já mandei para o meu revisor.

A primeira edição

          Assim se deu o diálogo entre dois velhos amigos: - É apenas um livro. - Não, não é apenas um livro, mas a primeira e...