arte de Alex Grey
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Qual era o problema do texto dele?
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Nenhum.
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E por que não foi publicado?
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O problema era ele, o autor. Ele sempre enviava seu manuscrito a um
revisor, mas o seu caráter desconfiado sempre o fazia revisar a
revisão do revisor. Daí, se alguma coisa fosse mexida ou mudada e
fizesse sentido, obrigava-se a refazer todo o texto.
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Mas eu o conheço. É um sujeito bastante culto.
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Sim. Mas o que você quer dizer com isso?
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É que me estranhava nunca ter escrito nada. Nem mesmo um conto ou um
ensaio. Conversei com ele certas vezes e vi que era homem de ideias
originais. Lembro ter falado com Carolina: “Sabe aquele sujeito?
Culto! Certamente deve estar escrevendo algo de peso. Com tanta
cultura e ainda não ter nada publicado, deve ser por não se
simpatizar com coisas pequenas.”
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Você acha? Tive um professor assim também de grande cultura, mas
jamais escrevera algo criativo. No máximo artigos acadêmicos, eu
acho.
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Mas Carolina, esse homem fala como um poeta!
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Talvez seja um Dante! Talvez esteja escrevendo a História do Mundo
em versos!
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Deixa de ironia, você me entendeu.
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Lembra do Tarcísio?
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O do mestrado?
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Sim. Ele também falava como poeta. Ficou um tempo sumido e depois
apareceu com aquele texto sobre os deuses da mesopotâmia. Quando o
encontrei, depois de ter lido o volume sobre Javé, ele me disse:
“Precisava de tempo, Carolina. Só a solidão absoluta para se
criar algo absoluto!”
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Sei, mas você foi para aonde?
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Fui às montanhas. Em Davos.
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Por causa de Mann?
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Não, por causa de mim.
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Sentiu saudades?
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Sim, principalmente de você. Continua bela. Adoro sua cor. Sua voz.
Você ainda pode ser minha?
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É, parece que você ficou uma eternidade nas montanhas. Perdeu a
mudança dos tempos, hoje não se possui mais mulheres.
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Ah, então voltarei às montanhas!
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Não seja bobo. Adorei o Javé.
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Ora, tornou-se uma crente?
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Nada disso, idiota! Adorei de admirar!
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Eu sei. Adoro seu rosto vermelho quando se zanga.
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Tá, mas fala sério.
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Sim, subi as montanhas por causa de Mann e quis também escrever
minha mágica. E as montanhas sempre foram as casas dos deuses, não?
Olimpo, Sião…
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Por isso você usou uma linguagem poética?
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Sim, religião é poesia! Lembra do professor Estevão? Ele dizia: “O
discurso religioso que não se expressa poeticamente é discurso
racional e se orienta pela razão e não pela fé, pelo mito. Dessa
forma, não se pode fazer religião de maneira racional, mas somente
poeticamente”
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Professor, dessa forma retiramos qualquer vestígio de verdade da
religião, não? Ela se reduz a meras ilustrações e parábolas para
orientar a vida.
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Sim. A religião que almeja algo além disso deixa de ser religião e
se torna filosofia ou teologia. Pois precisará se apoiar em
categorias racionais.
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Entendo. Desculpe-me, mestre, mas gostaria então de saber a sua
opinião sobre os religiosos fundamentalistas que interpretam suas
religiosidades como verdades irrefutáveis.
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Sim. Para isso eles precisam de argumentos racionais, não?
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Sim, certamente.
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Então, até mesmo eles quando afirmam a verdade religiosa estão ao
mesmo tempo dizendo que essa verdade precisa do apoio da razão, ou
seja, daquilo que não pode ser encontrado na própria religiosidade.
Por isso são obrigados a sair dos templos e das lendas e entrar nas
bibliotecas dos ímpios em busca de elementos não-religiosos para
dar sentido aos seus mitos.
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Isso no mínimo é irônico, mestre!
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Eu diria contraditório. A religião sem poesia se torna
contraditória. A religião só tem sentido na linguagem fantástica
da poesia. Mas é preciso que os religiosos entendam que suas
religiões são apenas uma visão fantástica da realidade e não a
realidade mesma.
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Entendi, mestre. Como os fundamentalistas e piedosos creem que o
discurso religioso deles é revelação da realidade em si, abandonam
a poesia e se aventuram na linguagem filosófica criando mais
confusão do que já existe na própria poesia religiosa.
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Sim. E o precursor desse exercício foi Platão e seus discípulos
mais espiritualistas. A propósito, terminei agora um breve ensaio
que trata desse assunto e já mandei para o meu revisor.