Morreu. Ainda tinha consciência. Chegou à conclusão de que a consciência era a alma, ou espírito. Havia um corredor bem estreito a sua frente. No final dele uma porta vermelha aberta. Podia ver movimentos além da porta. Agora ouvia vozes. Um idioma que nunca ouvira, mas o estranho é que entendia o que as vozes falavam. Atrás dele a parede o empurrava em direção à porta vermelha aberta. Como uma mão que o conduzisse, dizendo que não teria como evitar de seguir em frente. Seguiu. Percebia que quanto mais se aproximava, mais a temperatura aumentava. Pensou que poderia ser pela presença daquelas outras pessoas. O volume das vozes aumentava, vozes femininas e masculinas se misturavam. Quando ultrapassou a porta viu um grande salão iluminado por uma luz fraca. Olhou as outras consciências que ali estavam e mesmo que suas vozes passassem uma ideia de alegria, elas traziam em si uma tristeza, algo que se infiltrara como um vírus e a alegria era como a aplicação de alguma droga para produzir dissimulação de humor. Fez-se silêncio. Um silêncio imediato. Aquilo revelava disciplina ou temor. Pensou que o silêncio não deveria ser pela sua presença, pois, como ele, recém-chegado, poderia receber tal veneração. Mais adiante pôde ver o motivo do silêncio. Um ser que ele não conseguia descrever com sua linguagem projetava-se sobre as consciências. A sua presença provocava um temor exacerbado. Medo mesmo. Abaixo dele vinham outras criaturas também difíceis de serem descritas e vinham num coro repetitivo que parecia uma procissão. As consciências ali presentes ficaram plenamente mudas. Só se ouvia os movimentos desse ser aterrador e o coro que lhe seguia. A porta atrás dele se fechou com a mesma reverência. O ser veio em sua direção e parou a sua frente. E se deu o seguinte diálogo.
- Seja bem-vindo, estrangeiro!
- Obrigado.
- Esse é o meu reino e esses são meus
súditos. Eu sou o seu deus-rei!
- Não conheço seu idioma, mas o entendo.
Como pode isso?
- Meu servo, você não está mais preso às
limitações de seu corpo terreno, sua alma está liberta, aquilo que lhe era
obscurecido pela matéria agora se manifesta livremente, explicitamente a você.
Os seus sentidos foram completados pela plena consciência. Nada mais lhe é
velado, mas tudo é-lhe revelado!
- Sei. E agora o que se faz?
- Bem, você deverá passar por um processo
de adaptação. Por mais que sua consciência esteja liberta, ela precisa ser
treinada. Deverá conhecer as ordens do dia, a hierarquia e as suas tarefas.
- Sério? Pensava que aqui não haveria
essas burocracias terrenas.
- Sim, entendo. Mas na terra vocês apenas
estão estagiando, entende?
- Ah, sim.
O deus-rei fez uma pausa e chamou uma das
criaturas do coro e deu-lhe uma ordem que ele não ouviu. Imediatamente sumiu
correndo pelo grande salão. Fez um gesto com a mão e as consciências voltaram a
falar. Muitos vieram em sua direção para dar-lhe as boas-vindas. Uma coisa o
deixava surpreso, não via nenhum conhecido. Todos eram estranhos a ele. E como
se lesse seu pensamento, o deus-rei, disse:
- Não, meu servo. Suas identidades
terrenas foram apagadas. Não adianta tentar encontrar alguém que você conheceu
na terra. Aqui são todos novas criaturas. Tudo é novo, entende?
Ele apenas deu um sorriso sem graça,
melancólico. Foi conduzido até uma sala escura que tinha um telão.
- Isso te deixou triste?
- Sim.
- Por quê?
- Sabe, lá na terra o que mais me
assustava com a morte era a ideia de nunca mais ver as pessoas que você amava.
- Sei, mas entenda, tudo agora vai bem.
Você terá a chance de fazer novas amizades e de ter novos amores.
- É verdade. Talvez seja ainda resquícios
dos meus sentimentos terrenos, não?
- Sem dúvida.
As criaturas e as consciências começavam a
ocupar os lugares na sala com telão. Algumas luzes amarelas foram ligadas para
indicar os principais lugares. Uma cadeira que mais parecia um trono era o
lugar do deus-rei. Ao seu lado uma outra cadeira, também com certa importância,
mas abaixo da do deus-rei estava reservada para ele.
- Vamos ver um filme?
- Sim, vamos sim. Enquanto minhas
criaturas preparam o seu curso de adaptação, costumamos entreter nossos
recém-chegados com cinema.
- Legal. Que filme você escolheu?
- O seu filme.
- O meu? Qual?
- O da sua vida.
- Como assim?
- Ora, o filme da sua vida terrena. Todas
as consciências que aqui chegaram viram com seus novos camaradas os seus
filmes. É bastante divertido.
- Bem, isso me pegou de surpresa. Acho que
isso pode ser embaraçoso.
- Ora, por quê?
- Bem, existem coisas da minha vida que
sinto vergonha e não gostaria que fossem reveladas a estranhos, sabe?
- Entendo. Mas vou te confidenciar algo. É
justamente aquilo que você sente vergonha que nós mais adoramos por aqui.
Aquilo que te denigre é nosso combustível. Isso é a verdadeira comédia, não
concorda? Rir das desgraças alheias!
- Bem, mas eu achava que aqui, por ser um
lugar de plenitude dos sentidos, da razão, seríamos mais corretos.
- Rá! Não, meu servo, aqui é o lugar da
realidade e não da ficção!
- Entendo, mas o que eu poderia fazer para
impedir isso?
- Nada.
- Proponho uma coisa. Posso assistir
sozinho ao filme e sugerir algumas edições?
- Rá! Você é realmente engraçado. Aqui eu
sou o produtor e diretor do cinema. Vou lhe fazer outra confidência, já editei
seu filme. E para ser sincero, as partes que você se envergonha de sua
existência receberam uma edição especial, com grandes efeitos. Tenho certeza
que todos gostarão.
- Por favor, não.
- Chega de conversa e vamos ao filme!
- Misericórdia!
A palavra pronunciada por ele revelava
verdadeiro desespero. Todos pararam e o olhavam assustado. O deus-rei agora
tinha uma aparência medonha. Uma portinha do lado direito do telão se abriu.
Uma outra criatura, bem diferente daquelas que ele já vira ali, apareceu na
portinha. Fez um sinal para o deus-rei e este foi até ela. Conversaram. O
deus-rei retornou com a face medonha agora mais aterradora e disse:
- Vá! Espero que volte logo!
- Ir? Ir para aonde?
- Saia daqui, seu servo de merda! Vá até a
portinha e siga aquela criatura.
- Por quê?
- Porque você tem que ir, vá!
- E o meu filme? Vocês verão?
- Não, não enquanto você voltar. Agora vá!
Ele ficou aliviado de saber que seu filme
não passaria naquele momento. Correu até a portinha e cada vez que se
aproximava daquela criatura sentia-se mais leve. Sentimento bem diferente de
quando chegara àquele lugar escuro.
- Venha, não precisa ter medo.
- Sei disso, sei disso naturalmente e é
estranho.
- Seja bem-vindo. Vamos subir?
- Subir? Existe o lá em cima?
- Sim, amigo.
- Amigo? Nos conhecemos?
- Não, mas tratamos todos os
recém-chegados por amigos.
- Ah, sim.
- Diferente daí, né?
- Sim, bem diferente.
- Preparado para a subida? Ela é bem
longa.
- Pensava que haveria um jeito mais rápido
de subir.
- E tem, mas o modo mais lento é melhor
para os recém-chegados, pois podemos nos conhecer melhor, não?
- Sim. E quanto mais tempo demorar melhor.
- Por quê?
- O deus-rei ia passar o filme de minha
vida e todos veriam.
- Qual o problema?
- Ora, existem mais coisas vergonhosas em
minha vida do que das que sinto orgulho.
- Sei.
- Pedi gentilmente a ele que fizesse
alguns cortes, pois me deixaria muito envergonhado, ainda mais perante pessoas
que não conheço.
- Não conhece? Não, meu amigo, ali havia
pessoas que você conhecia, sim. O problema era a adaptação. Você ainda está sob
o efeito da adaptação. As pessoas que te conheceram na terra e ali se encontram
te reconheceram, mas seguem estritamente as ordens dele.
- Nossa! Sério? Meu Deus!
- Sim. Após passar o efeito de adaptação
você mesmo reencontraria alguns amigos e amigas. E eles relembrariam contigo
todas as cenas mais impactantes da sua existência; inclusive aquelas que eles
não conheciam antes de serem reveladas pelo seu filme. E o que parece, o cinema
dele é a maior diversão naquele lugar.
- Nossa! Que crueldade! E por que você foi
até lá?
- Porque você nos chamou.
- Chamei?
- Sim.
- Quando?
- Quando sua consciência plena apelou para
a Misericórdia. Somos todos Misericórdia.
Seus olhos embaçaram com as lágrimas. Lembrou de sua mãe. Misericórdia era uma palavra que sempre estava na boca de sua mãe. E como um instinto natural quando diante de um grande acontecimento vexaminoso apelou sinceramente em seu coração o apelo materno. Como se tivesse voltado a ser um menino perdido e que desesperadamente procurava seus pais. Podia ver o semblante terno de sua mãe e os braços fortes de seu pai. Misericórdia era uma palavra que lhe levava para casa, para a segurança e cuidado de seu lar.
- Amigo, eu reconhecerei as pessoas lá em
cima?
- Sim, certamente.
- E elas me reconhecerão?
- Sem dúvida.
- Passarei também por uma adaptação antes?
- A adaptação já começou, amigo. A
adaptação é a subida.
- Ah, sim. Posso lhe fazer outra pergunta?
- Quantas quiser. As perguntas fazem parte
da adaptação.
- Lá também passará o filme de minha
existência?
- Sim.
- Sei, já esperava isso.
- E por que essa preocupação?
- Já falei, tem coisas de minha vida que
me envergonho...
A criatura começou então revelar todas
suas vergonhas. E ele se assustava com o seu conhecimento tão profundo da
psicologia humana. Suas vergonhas eram ditas por ele de uma maneira que não o
envergonhava mais. Era como se suas palavras ao revelar cada pecado cometido
fossem apagando, o perdoando.
- Engraçado, amigo. Ouvir você falando e
listando todos meus erros não me senti pesado como me senti somente com as ameaças
do deus-rei; mas, ao contrário, me sinto leve.
- Sei.
A criatura o olhava fixamente e seu olhar
o prendeu. Dentro de seus olhos contemplou algo que necessariamente deveria ser
a verdade. Seus olhos o afundavam numa tranquilidade plena. Seu semblante era
como chegar em casa, estar seguro. Sabia que poderia revelar qualquer coisa a
essa criatura. Seus olhos diziam: “Está tudo bem, amigo.”
- Olha, amigo, sinto que posso confiar em
você. E já afirmo que confio em você. Não tenho mais medo de ver meu filme com
outras pessoas. Sinto até mesmo um alívio, sabe? Nunca senti tanta paz em minha
vida como eu sinto agora. Seu semblante, seus olhos me levaram ao único lugar
que posso ser quem eu sou de verdade, casa. Você me fez voltar para casa e aqui
eu queria ficar para sempre. Ser seu amigo para sempre. Prometo melhorar em
nome de sua amizade. Perdoa meus erros e pode usá-los para melhorar outras
pessoas. Eu não me importo, o que importa mais é cultivar a nossa amizade; caso
isso seja interessante ao amigo.
- Ora, amigo, vejo que sua adaptação já se
aproxima do fim. E não se preocupe com o filme de sua vida. Lá em cima, meu Pai
é o produtor e Eu o diretor, entende? Durante a subida já fazia as edições.
Durante nossa conversa eu já ia retirando as injustiças, vinganças, rancores,
invejas, fofocas, adultérios, falsificações, roubos, mentiras, blasfêmias, etc.
Seu filme está limpo!
- Jesus?