arte de Kengo Kuma
Amsterdam
era o nome de um bar com pista de dança. Amsterdam era uma boate com
jukebox. Amsterdam era um inferninho encrustado em meio a sobrados
abandonados e ocupados por vagabundos e vagabundas. E era lá que se
escondia Samuel.
Samuel
era escritor e só conseguia escrever com barulho, com brigas, com
música brega. Naquela
sexta-feira chuvosa tocava “Garçom” de Reginaldo Rossi na
jukebox e um casal surreal dançava na pista. Ela com uniforme de
puta e ele com o de peão de obra. Ela usava uma minissaia que nada
escondia e pela idade seria melhor esconder. Ele alisava a bunda da
vagabunda enquanto
ela roçava o sexo nas coxas
do cowboy dos andaimes.
Todas
as sextas-feiras, Samuel saía para terminar de escrever uma crônica
ou um conto que deveria ser entregue no sábado para sair no caderno
literário dominical de um jornal e na revista semanal de literatura.
Dizia a Ivone,
sua esposa, que iria à biblioteca e depois jogar no bar com os
amigos de letras. Tudo muito bem armado com três fiéis amigos e
durante três anos a farsa vinha funcionando.
Edgar
era um amigo de infância de Samuel. Naquela sexta-feira, ele estava
de passagem pela cidade de seu amigo. Tinha o seu endereço, pois o
guardara certa vez quando
se encontraram no saguão de algum aeroporto. Edgar resolveu
fazer-lhe uma visita surpresa e colocar o papo em dia.
Samuel
era funcionário aposentado
da Receita Federal. Desde a juventude escrevia
contos e crônicas. Samuel sempre se dividiu entre o funcionalismo
público e as letras. Ele dizia: “Assim como Carlos!”,
referindo-se a Drummond, o poeta. Um livrinho de contos que escrevera
em homenagem a um embaixador fez com que ele saísse do anonimato.
Dizia que o livrinho era seu santo graal. Vendeu como água. O
livrinho já teve cinco edições e já foi traduzido em diversas
línguas. A edição em inglês já está na terceira. O embaixador
Edward Clutter era famoso nos Estados Unidos e precisando de uma
aproximação política com a Receita fez uma ponte via Samuel.
Samuel ganhava. O embaixador ganhava. E ambos ficavam felizes. Esse
livrinho que já fora tema de dissertação em alguma faculdade de
letras, deu a Samuel uma boa aposentadoria. Ivone não podia
reclamar. Nem os seus três filhos. Dessa forma havia um acordo
amigável
entre Ivone e Samuel: ela não o perturbaria em suas excentricidades.
Samuel sabia que poderia
revelar seu segredo à Ivone, mas ela não engoliria que ele se metia
num bordelzinho para escrever.
Ela diria: “Você vai
atrás das putas!”. Contudo, Samuel não gostava de putas, mas
gostava do ambiente infernal que elas viviam. Paradoxalmente, nunca
escrevera nada sobre esse submundo de putas e gigolôs, apenas nutria
sua imaginação daquele ambiente para produzir justamente a
antítese. Qualquer pessoa
mais ou menos equilibrada diria que Samuel precisava de terapia. E
ele tentou, mas viu que nenhum terapeuta conseguiria atingir o âmago
daquela excentricidade.
Edgar
chegou ao número do prédio de Samuel e tocou o interfone da
portaria. O porteiro com voz grave atendeu: “Pois não?” “Boa
noite, meu nome é Edgar, sou amigo de Samuel e Ivone, mas esqueci o
número do apartamento deles.” “Só um momento.” Respondeu o
porteiro e já tocando no botão de interfone do apartamento de dona
Ivone. “Boa noite, dona Ivone.” Saudou o porteiro com a voz
grave, porém
mais suave. “Boa noite, seu Joca.” “Dona Ivone, encontra-se na
portaria um senhor de nome Edgar e diz conhecer a senhora e seu
Samuel.” Falou o porteiro como se anunciasse a chegada de algum
membro da corte. “Sim! Edgar! Que
surpresa agradável! Pode deixá-lo entrar, seu Joca, muito
obrigada!” Respondeu Ivone sem esconder a surpresa agradável de
rever um amigo de longa data. “O
senhor pode subir, apartamento 310, terceiro andar, saindo do
elevador a terceira porta a esquerda” Orientou o porteiro mostrando
total conhecimento do prédio. “Muito obrigado, amigo, tenha uma
boa noite!” Respondeu educadamente Edgar. “Boa noite, senhor!”
Ivone
costumava receber a visita de sua amiga Joana às sextas-feiras
enquanto esperava Samuel voltar do bar. E agora a sexta-feira seria
mais interessante com a visita de Edgar. Os três conversaram
bastante e como Samuel demorava, Edgar perguntou onde ficava o tal
bar e ele mesmo iria até Samuel. Aproveitaria e tomaria alguma
bebida e lá mesmo conversariam, pois ainda naquela madrugada pegaria
um
voo de volta para casa. Ivone então fez um pequeno mapa para Edgar e
esse então se despediu e seguiu para o bar. Chegando
ao bar logo avistou os três amigos de Samuel, pois a descrição de
Ivone era perfeita. Aproximou-se da mesa e se apresentou: “Olá,
senhores, boa noite. Meu nome é Edgar, sou amigo de Samuel e estive
em seu apartamento e dona Ivone me disse que o encontraria aqui,
jogando.” “Olá, meu nome é Antunes, muito prazer. Acho que
Samuel já nos falou sobre você. É da Receita?” Antunes era o
amigo mais antigo de Samuel entre os três da mesa e era ele quem
coordenava o segredo do amigo. Edgar ficou satisfeito em saber que
era mencionado entre os amigos de Samuel e emendou: “Sim, sou da
Receita. Nos conhecemos desde a juventude.” “Ora,
amigo, sente aqui com a gente e beba alguma coisa enquanto esperamos
o Samuel voltar… do banheiro” Convidou o sempre apressado Costa.
Sob o olhar raivoso de Antunes, Costa baixou os olhos para o baralho.
Daí foi a vez do Jardel desviar o assunto: “Edgar, não? Sim,
Samuel nos falou de você. O que faz por aqui, amigo?” “Apenas
uma conexão para depois seguir viajem para casa, mas como meu voo
atrasou e só vai decolar na madrugada resolvi fazer uma visita
rápida ao Samuel.” Explicou Edgar.
Os
quatro jogavam sueca esperando o amigo em comum que nunca chegaria.
Antunes, Costa e Jardel sabiam, mas Edgar, não. Samuel quando
terminava sua escrita seguia direto para casa. Mandava um sms
para Antunes agradecendo.
Nicolau, dono do bar, um
português de barba branca que fazia jus ao seu nome, começava a
pigarrear. Pigarro que significava: “hora de fechar, cambada!”.
Os amigos se levantaram e
seguiram em direção à saída do bar. Se despediram, ficando apenas
Edgar e Antunes. “O que está acontecendo, Antunes? É mulher?”
Perguntou astutamente Edgar. “Não. Quer dizer, é. Mas não é
putaria, entende? É trabalho.” Respondeu Antunes com certa
dificuldade, talvez devido ao cansaço. “Trabalho? Samuel trabalha
a noite?” Perguntou com grande curiosidade, Edgar. “Sim, mas
somente às sextas-feiras.” Abrandou, Antunes. “E o que ele faz?”
Continuo o amigo inquisidor. “Escreve, ora. Samuel é escritor,
pô.” Com certo incômodo respondeu, Antunes. Não gostava de ser
interrogado como se fosse bandido. Já passara dos sessenta e não
admitia ser tratado como um adolescente irresponsável. Edgar se
desculpou. Edgar resolveu não insistir, chamou um táxi para o
aeroporto e se despediu calorosamente de Antunes, insistindo com as
desculpas. Pediu que mandasse um grande abraço a Samuel e que numa
outra oportunidade viria vê-lo.
Antunes
agora caminhava sozinho pela rua deserta e escura. Conhecia o caminho
até sua casa mesmo se andasse de olhos fechados. Costelinha, o
vira-lata do ferro-velho o saudou. Quando se aproximava de casa, seu
celular alarmou um sms:
e aí, amigo,
tudo bem? Perguntou
Samuel. Tudo na
paz. Um amigo seu, edgar, mandou um abraco. Respondeu
Antunes. Edgar
tava aqi? pqp, saudade daqele puto. Digitou
Samuel. ta ok.
To chegando em casa, to cheio de sono, depois a gnt se fala.
Despediu Antunes.
Samuel
olhou o relógio do celular. 16:30h. A mocinha da biblioteca tocou
levemente em seu ombro e disse: “Estamos fechando, senhor.” “Sim,
desculpe-me, mas precisava terminar esse conto. É para amanhã,
sabe?” Explicou se desculpando. “Não precisa se desculpar,
amanhã funciona até o meio-dia, tá?” Disse a amável mocinha.
“Ah, sim, amanhã não venho, tenho uma roda de carteado com
amigos. Mas obrigado, você é muito gentil. Fica com Deus.”