quarta-feira, 19 de abril de 2017

O segredo de Samuel




arte de Kengo Kuma


     Amsterdam era o nome de um bar com pista de dança. Amsterdam era uma boate com jukebox. Amsterdam era um inferninho encrustado em meio a sobrados abandonados e ocupados por vagabundos e vagabundas. E era lá que se escondia Samuel.

     Samuel era escritor e só conseguia escrever com barulho, com brigas, com música brega. Naquela sexta-feira chuvosa tocava “Garçom” de Reginaldo Rossi na jukebox e um casal surreal dançava na pista. Ela com uniforme de puta e ele com o de peão de obra. Ela usava uma minissaia que nada escondia e pela idade seria melhor esconder. Ele alisava a bunda da vagabunda enquanto ela roçava o sexo nas coxas do cowboy dos andaimes.

     Todas as sextas-feiras, Samuel saía para terminar de escrever uma crônica ou um conto que deveria ser entregue no sábado para sair no caderno literário dominical de um jornal e na revista semanal de literatura. Dizia a Ivone, sua esposa, que iria à biblioteca e depois jogar no bar com os amigos de letras. Tudo muito bem armado com três fiéis amigos e durante três anos a farsa vinha funcionando.

     Edgar era um amigo de infância de Samuel. Naquela sexta-feira, ele estava de passagem pela cidade de seu amigo. Tinha o seu endereço, pois o guardara certa vez quando se encontraram no saguão de algum aeroporto. Edgar resolveu fazer-lhe uma visita surpresa e colocar o papo em dia.

     Samuel era funcionário aposentado da Receita Federal. Desde a juventude escrevia contos e crônicas. Samuel sempre se dividiu entre o funcionalismo público e as letras. Ele dizia: “Assim como Carlos!”, referindo-se a Drummond, o poeta. Um livrinho de contos que escrevera em homenagem a um embaixador fez com que ele saísse do anonimato. Dizia que o livrinho era seu santo graal. Vendeu como água. O livrinho já teve cinco edições e já foi traduzido em diversas línguas. A edição em inglês já está na terceira. O embaixador Edward Clutter era famoso nos Estados Unidos e precisando de uma aproximação política com a Receita fez uma ponte via Samuel. Samuel ganhava. O embaixador ganhava. E ambos ficavam felizes. Esse livrinho que já fora tema de dissertação em alguma faculdade de letras, deu a Samuel uma boa aposentadoria. Ivone não podia reclamar. Nem os seus três filhos. Dessa forma havia um acordo amigável entre Ivone e Samuel: ela não o perturbaria em suas excentricidades. Samuel sabia que poderia revelar seu segredo à Ivone, mas ela não engoliria que ele se metia num bordelzinho para escrever. Ela diria: “Você vai atrás das putas!”. Contudo, Samuel não gostava de putas, mas gostava do ambiente infernal que elas viviam. Paradoxalmente, nunca escrevera nada sobre esse submundo de putas e gigolôs, apenas nutria sua imaginação daquele ambiente para produzir justamente a antítese. Qualquer pessoa mais ou menos equilibrada diria que Samuel precisava de terapia. E ele tentou, mas viu que nenhum terapeuta conseguiria atingir o âmago daquela excentricidade.

     Edgar chegou ao número do prédio de Samuel e tocou o interfone da portaria. O porteiro com voz grave atendeu: “Pois não?” “Boa noite, meu nome é Edgar, sou amigo de Samuel e Ivone, mas esqueci o número do apartamento deles.” “Só um momento.” Respondeu o porteiro e já tocando no botão de interfone do apartamento de dona Ivone. “Boa noite, dona Ivone.” Saudou o porteiro com a voz grave, porém mais suave. “Boa noite, seu Joca.” “Dona Ivone, encontra-se na portaria um senhor de nome Edgar e diz conhecer a senhora e seu Samuel.” Falou o porteiro como se anunciasse a chegada de algum membro da corte. “Sim! Edgar! Que surpresa agradável! Pode deixá-lo entrar, seu Joca, muito obrigada!” Respondeu Ivone sem esconder a surpresa agradável de rever um amigo de longa data. “O senhor pode subir, apartamento 310, terceiro andar, saindo do elevador a terceira porta a esquerda” Orientou o porteiro mostrando total conhecimento do prédio. “Muito obrigado, amigo, tenha uma boa noite!” Respondeu educadamente Edgar. “Boa noite, senhor!”

     Ivone costumava receber a visita de sua amiga Joana às sextas-feiras enquanto esperava Samuel voltar do bar. E agora a sexta-feira seria mais interessante com a visita de Edgar. Os três conversaram bastante e como Samuel demorava, Edgar perguntou onde ficava o tal bar e ele mesmo iria até Samuel. Aproveitaria e tomaria alguma bebida e lá mesmo conversariam, pois ainda naquela madrugada pegaria um voo de volta para casa. Ivone então fez um pequeno mapa para Edgar e esse então se despediu e seguiu para o bar. Chegando ao bar logo avistou os três amigos de Samuel, pois a descrição de Ivone era perfeita. Aproximou-se da mesa e se apresentou: “Olá, senhores, boa noite. Meu nome é Edgar, sou amigo de Samuel e estive em seu apartamento e dona Ivone me disse que o encontraria aqui, jogando.” “Olá, meu nome é Antunes, muito prazer. Acho que Samuel já nos falou sobre você. É da Receita?” Antunes era o amigo mais antigo de Samuel entre os três da mesa e era ele quem coordenava o segredo do amigo. Edgar ficou satisfeito em saber que era mencionado entre os amigos de Samuel e emendou: “Sim, sou da Receita. Nos conhecemos desde a juventude.” “Ora, amigo, sente aqui com a gente e beba alguma coisa enquanto esperamos o Samuel voltar… do banheiro” Convidou o sempre apressado Costa. Sob o olhar raivoso de Antunes, Costa baixou os olhos para o baralho. Daí foi a vez do Jardel desviar o assunto: “Edgar, não? Sim, Samuel nos falou de você. O que faz por aqui, amigo?” “Apenas uma conexão para depois seguir viajem para casa, mas como meu voo atrasou e só vai decolar na madrugada resolvi fazer uma visita rápida ao Samuel.” Explicou Edgar.

     Os quatro jogavam sueca esperando o amigo em comum que nunca chegaria. Antunes, Costa e Jardel sabiam, mas Edgar, não. Samuel quando terminava sua escrita seguia direto para casa. Mandava um sms para Antunes agradecendo. Nicolau, dono do bar, um português de barba branca que fazia jus ao seu nome, começava a pigarrear. Pigarro que significava: “hora de fechar, cambada!”. Os amigos se levantaram e seguiram em direção à saída do bar. Se despediram, ficando apenas Edgar e Antunes. “O que está acontecendo, Antunes? É mulher?” Perguntou astutamente Edgar. “Não. Quer dizer, é. Mas não é putaria, entende? É trabalho.” Respondeu Antunes com certa dificuldade, talvez devido ao cansaço. “Trabalho? Samuel trabalha a noite?” Perguntou com grande curiosidade, Edgar. “Sim, mas somente às sextas-feiras.” Abrandou, Antunes. “E o que ele faz?” Continuo o amigo inquisidor. “Escreve, ora. Samuel é escritor, pô.” Com certo incômodo respondeu, Antunes. Não gostava de ser interrogado como se fosse bandido. Já passara dos sessenta e não admitia ser tratado como um adolescente irresponsável. Edgar se desculpou. Edgar resolveu não insistir, chamou um táxi para o aeroporto e se despediu calorosamente de Antunes, insistindo com as desculpas. Pediu que mandasse um grande abraço a Samuel e que numa outra oportunidade viria vê-lo.

     Antunes agora caminhava sozinho pela rua deserta e escura. Conhecia o caminho até sua casa mesmo se andasse de olhos fechados. Costelinha, o vira-lata do ferro-velho o saudou. Quando se aproximava de casa, seu celular alarmou um sms: e aí, amigo, tudo bem? Perguntou Samuel. Tudo na paz. Um amigo seu, edgar, mandou um abraco. Respondeu Antunes. Edgar tava aqi? pqp, saudade daqele puto. Digitou Samuel. ta ok. To chegando em casa, to cheio de sono, depois a gnt se fala. Despediu Antunes.

     Samuel olhou o relógio do celular. 16:30h. A mocinha da biblioteca tocou levemente em seu ombro e disse: “Estamos fechando, senhor.” “Sim, desculpe-me, mas precisava terminar esse conto. É para amanhã, sabe?” Explicou se desculpando. “Não precisa se desculpar, amanhã funciona até o meio-dia, tá?” Disse a amável mocinha. “Ah, sim, amanhã não venho, tenho uma roda de carteado com amigos. Mas obrigado, você é muito gentil. Fica com Deus.”

A primeira edição

          Assim se deu o diálogo entre dois velhos amigos: - É apenas um livro. - Não, não é apenas um livro, mas a primeira e...