-
Papai, de onde vem as árvores? Do centro da terra?
[
O jardim estava impecável. O verde da grama parecia um verde real,
não um verde que se apresenta aos nossos sentidos, mas o verde
etéreo. O verde platônico, ideal. Talvez fosse o sol que fizesse
isso, pois o sol parecia também diferente. Ou talvez fosse nossa
mente que produzia esse idealismo dando um sentido superior às
coisas. Colocaram um balanço num galho forte da árvore e crianças
revezavam balançando e gritando. Outras corriam atrás dos cachorros
ou os cachorros que corriam atrás delas. Uma manga caiu e me lembrei
de Newton. Se Newton fosse brasileiro não seria maçã, mas manga. A
diferença é que em vez de descobrir a gravidade, ele apenas comeria
a manga. ]
[
- Olha, tem flores novas! Olha, quantas borboletas, mamãe! Qual é o
coletivo de borboletas, mamãe? São muitas! Tira uma foto, mamãe!
Não, vamos tirar uma selfie! ]
[
De todas as árvores que havia na praça, apenas uma lhe chamava a
atenção. Ela permanecia sem folhas, completamente nua. Olhou para
Joana, tirou um canivete do bolso e começou a talhar na árvore nua
suas iniciais. Ela achou ruim, pois havia tantas árvores lindas na
praça e ele escolhera aquela sem beleza para gravar seus nomes. Ela
não disse nada, mas Antônio conhecia o olhar da mulher que
escolhera, já sentia que era uma só carne com ela. - Não fique
triste, Joana. Veja essa árvore, olhe sem a submissão dos sentidos,
ela é única em meio a tantas parecidas. Olha, minha Joana, ninguém
talhou seus nomes nela, essa é a nossa árvore. Ela servirá de
símbolo eterno de nosso amor. E quando eu te irritar, você virá
até aqui e me perdoará. E quando ficarmos velhos, seremos parecidos
com ela, sem folhas, e seremos amigos para sempre. Olha, minha Joana,
olha a nossa árvore, ela é única. ]
[
Pelo lado norte da praça desciam algumas pessoas. Um vinha na
frente, com olhar alegre. Sorria mesmo. Parecia estar muito alegre.
Era desse olhar que precisávamos! Atrás dele vinham homens e
mulheres. Passou pelas crianças do balanço e um dos homens mais
afoito segurou o balanço com medo que este acertasse o sorridente
homem. Ele parou e segurou o braço do afoito. Chegou-se até o
balanço e começou a balançar uma criança. Ele ria, a criança
ria, as pessoas riam. Joana chamou Antônio e apontou para aquele
homem que balançava a criança. Antônio disse: - o que foi, você o
conhece? Joana respondeu: - está com ciúmes? Antônio sem graça,
Joana beijou seu rosto. ]
[
Joana puxou Antônio e mostrou que uma roda de pessoas se formava em
volta daquele homem sorridente. Correndo e puxando Antônio chegaram
até a roda. O homem falava: - olhai os lírios do campo! - olhai as
aves do céu! ]
-
Parece que lá no centro da terra, papai, deve ter um feiticeiro
barbudo que tem uma máquina enorme e faz as raízes das árvores, as
raízes começam a ser empurradas para aqui em cima e perfuram a
terra e começam a subir.
-
Tá, e como surgem as folhas, filha?
-
Ora, papai, o feiticeiro do centro da terra passa uma loção mágica
nas raízes que a máquina produz. Essa loção tem um efeito mágico
quando tocada pelo sol, esse efeito faz surgir as folhas e os frutos.
Como esse feiticeiro possui diversas loções mágicas, para cada
raiz ele utiliza uma, por isso essa variedade de árvores, entendeu,
papai?
- Tá,
e por que em algumas estações isso não acontece?
- Aí,
é porque o feiticeiro está de férias e ele viaja para sua casa e
vai visitar sua filha, uma princesa…
[
- Joana, lembra daquela praça que talhei nossas iniciais numa árvore
que não tinha folhas? - Sim, lembro. - Ela está completamente
abandonada. Nenhuma árvore. Nem mesmo a nossa. - E você pensou que
seria a nossa árvore. - É, nada é para sempre. ]
[
- Olha, aqui é um bom lugar. - Esse terreno tem dono? - Não, não,
está abandonado. - O que são essas marcas no chão? - Ah, aqui foi
lugar de execução no passado. - Sério? - Sim, o povo agora pensa
que o lugar é amaldiçoado. - Ora, essas coisas ainda existem? -
Você tem certeza que deseja investir num local como esse? - Sim, não
sou supersticioso. - Sei, mas o povo é e você precisa do povo, não?
- Sim. ]
[
O homem que sorria continuava a falar para as pessoas que o rodeavam.
Uma criança chegou mais perto e ele a puxou para seu colo. Antônio
e Joana prestavam bastante atenção. O homem agora falava de maneira
poética sobre seu pai, sobre a casa de seu pai. Uma mulher se lançou
aos seus pés e começou a chorar. Os homens que o acompanhavam
retirou a mulher e ele novamente segurou os braços ansiosos e tocou
na mulher. A mulher o olhou. Ele falou algo somente para ela. Ela
sorriu. Ele sorriu. Os homens que o acompanhavam se afastaram. E
aquele homem alegre ficou um bom tempo falando de diversas coisas que
serviam para todos: homens e mulheres. Sua linguagem era universal.
Sua linguagem era como o verde tão verde da grama daquele dia. Suas
ideias eram tão fortes como a força do grande galho que sustentava
o balanço das crianças. Sua aparência era tão real que nos
desnudavam a todos, como a árvore nua do centro da praça que agora
tinha encravada as iniciais de Antônio e Joana. ]
[
- Joana, você lembra daquele homem que falava com tanta sabedoria e
de maneira poética na praça? - Lembro sim, acho que era um artista,
não? - Não sei, mas nunca mais soube dele. - É, lembra que tinham
umas pessoas que ele sempre tinha que chamar a atenção? - É
verdade, é aquela coisa que o homem tem em si, vontade de dominar o
outro, não? - É, alguém sempre deseja dirigir a situação,
dominar as ideias. - É, mas aquele sujeito era difícil de dominar,
não? ]
-
Tá, esse feiticeiro é eterno?
-
Não, papai, nada é para sempre.
-
E quando ele morrer, quem fará as árvores?
-
Ora, papai, ele sempre está preparando um discípulo para continuar
seu trabalho. Ele mesmo já foi discípulo de seu mestre.
-
Nossa, filha, quanta disciplina, não?
-
Nem sempre, papai. Já percebeu que as estações se repetem, mas o
mundo nem sempre se comporta da mesma forma?
-
Sim, é verdade.
-
Um discípulo leva mais a sério que outro. Mas as árvores vêm. E
elas vêm conforme os discípulos, entende, papai?
-
Entendo.
- Nada
é para sempre, papai.
[
- Eu não aguento mais ser chamado a atenção por ele. - Ele nos
trata como crianças. - Deixamos tudo por ele e é assim que ele nos
retribui? - Ingratidão! - Eu não gosto de seu modo irônico quando
colocamos nossas opiniões, quando lhe revelamos nossos ideais e
valores. - É verdade, para que tanta ironia, não? - Você fala:
“olha nossa casa” e ele diz: “isso nada é”. - Já estou
farto e vocês? - Também. - Também. - Temos que ser mais ofensivos.
- Ele não é maior que o movimento! - E ele tem uma missão e tem
que estar focado na missão! - É um irresponsável! - Olha, muitas
vezes o acho desrespeitoso com os grandes mestres. - Também já vi
algumas vezes ele ironizando mestres célebres. - E essa mania dele
usar uma linguagem cheia de códigos. - Também não gosto disso. -
Tenho um conselho: o que vocês acham de pedirmos a opinião dos
mestres? - Sim, temos que enquadrá-lo no ideal. ]
[
- Não! Vocês não entendem. Eu sou livre. Eu conheço o que quero.
Eu sei o que quero e não preciso pedir conselho a vocês. Não sigo
seus ideais, não moro em suas casas, vou aonde desejo ir e convivo
com quem desejo conviver. Não sou dominável ou domesticável. Sou
como uma fera! Sou como um leão! ]
-
Papai, de qual árvore você mais gosta?
-
Daquela ali, com flores amarelas.
-
Ah, sim.
-
Você gosta daquela sem folhas?
-
Não, papai.
-
Por que não?
-
Porque dela alguns homens pegaram para fazer algo mau…
[
- O que aconteceu? - Mataram-no. - Por quê? - Os mestres! - Meu
Deus! - Mas por que fizeram isso? - Forçamos muito, eu acho. - Onde
estão os outros? - Sumiram. - Fugiram? - Não, não era preciso, os
mestres se arrumaram com o judiciário. - Então por que fugiram? -
Não fugiram, sumiram. - Vergonha! ]
-
Que mau?
-
Acenderam uma grande fogueira para queimar um inocente, papai.
-
Nossa! E quando foi isso?
-
Todos os dias, papai.
[
- Por que me olham assustados? - Não sou domesticável, sou uma
fera, sou um leão! ]
[
- Antonio, juro que um dia passei por aquela praça, juro ter visto
aquele homem de novo. - Impossível, Joana, aquilo está abandonado.
- Não sei, parecia com ele e tive a mesma sensação que tive da
primeira vez que o vi. - Sei, mas seria muito bom que fosse ele,
aquele dia foi especial. - Sim, quem sabe ele volta? - Ele? - Sim,
aquele dia. ]
-
Filha, vamos embora, sua mãe deve estar preocupada.
-
Vamos sim, papai. Só um momento, papai.
-
O que foi?
-
Olha, olha papai, aquela flor…