Assim
se deu o diálogo entre dois velhos amigos:
-
É apenas um livro.
-
Não, não é apenas um livro, mas a primeira edição do livro.
-
Sim, eu sei que é a primeira edição. E o que isso tem de tão
importante? Por um acaso deixa de ser livro?
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Não, não, não. A primeira edição deste livro que não é um
livro qualquer se torna algo raro, emblemático.
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Tá, ok. Acalme-se. Mas ainda assim é apenas um livro e nada mais.
-
Não fale isso!
-
Falo sim, ora! O que vale num livro é o seu texto, ora! E o texto
está tanto na primeira edição quanto na edição atual. O que
você leu na primeira edição em mil-novecentos-e-sessenta-e-cinco
lerá também na edição de doi-mil-e-dez, ora! A única coisa que
realmente muda é o leitor!
-
Tá, tá! Mas a primeira edição é um achado literário valioso,
pois podemos comparar as mudanças editoriais. Por exemplo: na
primeira edição há uma introdução belíssima do professor
Raymundo Nogueira e escrito com ipsilon!
-
O que é escrito com ipsilon?
-
O Raymundo do professor é com ipsilon.
-
Ah, sim…
-
Raymundo Nogueira foi um dos raros eruditos e poliglota de nossa
cultura. Ele escreveu uma introdução na primeira edição, pois o
grande mestre já podia antever ali o surgimento de uma obra que
seria referência nacional e posteriormente internacional. Professor
Raymundo foi verdadeiramente profético!
-
Ah, pelo amor de Deus! Não me venha com suas pieguices!
-
Pieguice? Não estou sendo piegas, meu caro! Apenas dando honra quem
honra!
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Ok. Eu tenho a edição atual, tão rica quanto a primeira.
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Rá! Bom você falar isso, essa geração está tão carente de
mentes brilhantes que quem escreveu a introdução foi o Heitor
Macedo.
-
E qual o problema disso? Macedo é um intelectual, escreve para os
principais jornais do país.
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Ah, não diga isso! É notória a miopia dessa geração! Não temos
mais um Raymundo Nogueira, um Ferdinando da Cunha, um Oscar
Mascarenhas…
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O mundo muda, meu amigo! Necessidades mudam!
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Muda nada, o homem é o mesmo, os desejos são os mesmos…
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A tecnologia mudou, meu velho! E essa mudança foi fundamental. Essa
geração é a geração da velocidade. E não me refiro à
velocidade material, mas à velocidade do espírito, da mente.
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Ok, são uns apressadinhos ignorantes!
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Ah, sem zombaria! Agora é você que está sendo piegas!
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Nada!
-
Olha, eu até entendo que a primeira edição tenha algum valor
financeiro diferenciado para o colecionador, mas em relação ao
texto não há nenhuma mudança significativa, nenhuma alteração
no texto que retire seu significado.
-
Sim…
-
E o que realmente vale nesse texto é a sua atualidade. E estamos na
era dos livros eletrônicos. E se tivermos essa ideia anacrônica em
relação aos livros, deixaremos de apresentar aos jovens o melhor
da literatura.
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Mas…
-
Não, amigo. O papel é caro, é politicamente incorreto. Basta um
pequeno tablete com informações eletrônicas e, pimba!, eis
milhares de livros nas palmas das mãos!
-
Ah, mas e o prazer de virar páginas, do cheiro novo de livro…
-
Isso é para os velhos como a gente ou para aqueles que ainda sentem
um prazerzinho qualquer nessas velharias sentimentais. Basta pegar
uma obra de Fyódor e dizer: papel é cem, tablete é vinte, qual
vai ser, meu jovem?
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Papel!
-
Não, tablete! Não esqueça que essa geração é veloz. Quem
chegar primeiro leva.
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Não, ainda tenho esperança de salvar o livro!
-
Ei, mas o livro não está ameaçado. O livro é o texto. Esteja
escrito, seja falado. Não importa. O texto é o livro!
-
Não, há um ritual na leitura do livro. Começa em ir a algum lugar
específico e agradável. Uma poltrona, luz, talvez uma música
suave, porta fechada, um copo de vinho, café também serve,
silêncio, ler em voz alta ou em pensamento. O virar página, marcar
com lápis pensamentos que desejamos eternos, o som das páginas
sendo viradas.
-
Bem, o ritual ainda é possível nos tabletes. Alguns elementos não
são mais necessários, como: a luz. Muitos desses tabletes modernos
já vem com luz. E tem mais, o próprio tablete já traz em si
música e biblioteca para pesquisa.
-
E às páginas?
-
Ora, para que páginas? Para que derrubar árvores? Você tem que
aceitar as mudanças, meu amigo. Será que você não percebe que
isso também favorece o meio ambiente e potencializa as vendas
favorecendo a geração de empregos?
-
Ah, não! Ao contrário, vai promover desemprego!
-
Não, não! As técnicas serão aprimoradas. Certamente, algumas
funções sumirão, mas outras surgirão, privilegiando o
profissional bem qualificado, melhorando seu salário com uma
jornada de trabalho muito mais flexível.
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Tenho minhas dúvidas…
-
Ah, mas é claro, essas sempre estarão conosco…
-
Quem?
-
As dúvidas, ora! Olha só, quantos pensadores, cientistas,
filósofos, intelectuais do passado sonharam com tudo isso que
temos? René, Michel, Thomas, Jean, Francis, William, Emanuel, etc.,
todos eles idealizaram o nosso tempo e nos invejaram! E você aí às
voltas com o passado, amigo?
-
Bem, posso viver bem com a nossa tecnologia, mas jamais abrirei mão
do bom e velho livro, cheio de páginas.
-
Sem problema, meu velho. Mas a tecnologia está aí para facilitar
nossas vidas. E por que carregar tanto peso na mala se podemos levar
tudo que foi escrito pelos melhores homens e mulheres num pequeno
tablete na palma da mão?
-
Ah, meu amigo, sei não, sei não… Mas acho de uma tremenda ofensa
aos gigantes dizer que nós, tão pequenos, os carregamos nas palmas
de nossas mãozinhas.