sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

A primeira edição

         
    Assim se deu o diálogo entre dois velhos amigos:
    - É apenas um livro.
    - Não, não é apenas um livro, mas a primeira edição do livro.
    - Sim, eu sei que é a primeira edição. E o que isso tem de tão importante? Por um acaso deixa de ser livro?
    - Não, não, não. A primeira edição deste livro que não é um livro qualquer se torna algo raro, emblemático.
    - Tá, ok. Acalme-se. Mas ainda assim é apenas um livro e nada mais.
    - Não fale isso!
    - Falo sim, ora! O que vale num livro é o seu texto, ora! E o texto está tanto na primeira edição quanto na edição atual. O que você leu na primeira edição em mil-novecentos-e-sessenta-e-cinco lerá também na edição de doi-mil-e-dez, ora! A única coisa que realmente muda é o leitor!
    - Tá, tá! Mas a primeira edição é um achado literário valioso, pois podemos comparar as mudanças editoriais. Por exemplo: na primeira edição há uma introdução belíssima do professor Raymundo Nogueira e escrito com ipsilon!
    - O que é escrito com ipsilon?
    - O Raymundo do professor é com ipsilon.
    - Ah, sim…
    - Raymundo Nogueira foi um dos raros eruditos e poliglota de nossa cultura. Ele escreveu uma introdução na primeira edição, pois o grande mestre já podia antever ali o surgimento de uma obra que seria referência nacional e posteriormente internacional. Professor Raymundo foi verdadeiramente profético!
    - Ah, pelo amor de Deus! Não me venha com suas pieguices!
    - Pieguice? Não estou sendo piegas, meu caro! Apenas dando honra quem honra!
    - Ok. Eu tenho a edição atual, tão rica quanto a primeira.
    - Rá! Bom você falar isso, essa geração está tão carente de mentes brilhantes que quem escreveu a introdução foi o Heitor Macedo.
    - E qual o problema disso? Macedo é um intelectual, escreve para os principais jornais do país.
    - Ah, não diga isso! É notória a miopia dessa geração! Não temos mais um Raymundo Nogueira, um Ferdinando da Cunha, um Oscar Mascarenhas…
    - O mundo muda, meu amigo! Necessidades mudam!
    - Muda nada, o homem é o mesmo, os desejos são os mesmos…
    - A tecnologia mudou, meu velho! E essa mudança foi fundamental. Essa geração é a geração da velocidade. E não me refiro à velocidade material, mas à velocidade do espírito, da mente.
    - Ok, são uns apressadinhos ignorantes!
    - Ah, sem zombaria! Agora é você que está sendo piegas!
    - Nada!
    - Olha, eu até entendo que a primeira edição tenha algum valor financeiro diferenciado para o colecionador, mas em relação ao texto não há nenhuma mudança significativa, nenhuma alteração no texto que retire seu significado.
    - Sim…
    - E o que realmente vale nesse texto é a sua atualidade. E estamos na era dos livros eletrônicos. E se tivermos essa ideia anacrônica em relação aos livros, deixaremos de apresentar aos jovens o melhor da literatura.
    - Mas…
    - Não, amigo. O papel é caro, é politicamente incorreto. Basta um pequeno tablete com informações eletrônicas e, pimba!, eis milhares de livros nas palmas das mãos!
    - Ah, mas e o prazer de virar páginas, do cheiro novo de livro…
    - Isso é para os velhos como a gente ou para aqueles que ainda sentem um prazerzinho qualquer nessas velharias sentimentais. Basta pegar uma obra de Fyódor e dizer: papel é cem, tablete é vinte, qual vai ser, meu jovem?
    - Papel!
    - Não, tablete! Não esqueça que essa geração é veloz. Quem chegar primeiro leva.
    - Não, ainda tenho esperança de salvar o livro!
    - Ei, mas o livro não está ameaçado. O livro é o texto. Esteja escrito, seja falado. Não importa. O texto é o livro!
    - Não, há um ritual na leitura do livro. Começa em ir a algum lugar específico e agradável. Uma poltrona, luz, talvez uma música suave, porta fechada, um copo de vinho, café também serve, silêncio, ler em voz alta ou em pensamento. O virar página, marcar com lápis pensamentos que desejamos eternos, o som das páginas sendo viradas.
    - Bem, o ritual ainda é possível nos tabletes. Alguns elementos não são mais necessários, como: a luz. Muitos desses tabletes modernos já vem com luz. E tem mais, o próprio tablete já traz em si música e biblioteca para pesquisa.
    - E às páginas?
    - Ora, para que páginas? Para que derrubar árvores? Você tem que aceitar as mudanças, meu amigo. Será que você não percebe que isso também favorece o meio ambiente e potencializa as vendas favorecendo a geração de empregos?   
    - Ah, não! Ao contrário, vai promover desemprego!
    - Não, não! As técnicas serão aprimoradas. Certamente, algumas funções sumirão, mas outras surgirão, privilegiando o profissional bem qualificado, melhorando seu salário com uma jornada de trabalho muito mais flexível.
    - Tenho minhas dúvidas…
    - Ah, mas é claro, essas sempre estarão conosco…
    - Quem?
    - As dúvidas, ora! Olha só, quantos pensadores, cientistas, filósofos, intelectuais do passado sonharam com tudo isso que temos? René, Michel, Thomas, Jean, Francis, William, Emanuel, etc., todos eles idealizaram o nosso tempo e nos invejaram! E você aí às voltas com o passado, amigo?
    - Bem, posso viver bem com a nossa tecnologia, mas jamais abrirei mão do bom e velho livro, cheio de páginas.
    - Sem problema, meu velho. Mas a tecnologia está aí para facilitar nossas vidas. E por que carregar tanto peso na mala se podemos levar tudo que foi escrito pelos melhores homens e mulheres num pequeno tablete na palma da mão?
    - Ah, meu amigo, sei não, sei não… Mas acho de uma tremenda ofensa aos gigantes dizer que nós, tão pequenos, os carregamos nas palmas de nossas mãozinhas.

Yolanda

- Yolanda, acho que te amo.
- U-hum…
- Não acredita?
- Não.
- Por quê?
- Você me deu um tapa…
- Ora, mas aquilo foi tesão.
Se despediu e saiu. Chegou em casa. Silêncio. A mulher ainda mantinha-se muda. Foi ao quarto, tirou a roupa e tomou uma ducha. Na sala, a mulher com olhar distante não via a novela que passava na tevê. Foi à cozinha, mexeu nas panelas, serviu e esquentou no micro-ondas. Era irritante o silêncio. Ouvia com agonia o garfo bater no fundo do prato, a comida sendo mastigada e engolida, o som de dente roendo unha. Resolveu manter o jogo do silêncio. Foi ao quarto, pegou o notebook, leu as notícias. Pegou o celular, duas mensagens de Yolanda. Pensou em acessá-las, desistiu. Foi ao banheiro, escovou os dentes, voltou para a cama, pegou o celular e leu as mensagens de Yolanda: “Desculpe...” e “Se puder, vem me ver...” Voltou para a sala e a mulher chorava um choro de gente distante. Sentou-se ao seu lado, tocou-lhe sua mão, ela a recolheu. A mulher desligou a tevê com o controle remoto, levantou-se, foi à cozinha, bebeu água e foi para a cama. Ele a seguiu com os olhos e depois a seguiu até a cama. Ela ainda chorava e ele se despia. Ela se virou, ele deitou e a abraçou. Estava fria e gelada. Estava distante. Não havia tesão. Ela dormiu. Ele se levantou, se vestiu e saiu.
- Você veio…?
- Sim, Yolanda, eu acho que te amo.
- Entra.
Ele entrou.

A primeira edição

          Assim se deu o diálogo entre dois velhos amigos: - É apenas um livro. - Não, não é apenas um livro, mas a primeira e...