[Ela
subiu no ônibus e os homens a olharam. Vestia uma minissaia e as
pernas, ainda femininas, sem ainda sofrer a mutação dos ferros de
academia, roçavam uma na outra fazendo um barulhinho que excitaria o
monge mais radical – se é que ainda pode-se encontrar monges que
apreciem o sexo oposto.]
[Ela
sentia os olhares invasivos dos homens. Podia mesmo senti-los tocando
em seu corpo e essa sensação era uma mistura de escândalo e
êxtase. Até porque as duas sensações são irmãs inseparáveis.]
[Passou
pela roleta sob o olhar reprovador da trocadora gorda e desprezada
por aqueles olhares invasivos. Há tempos aquela mulher rancorosa não
se escandalizava ou, até mesmo, sentia o êxtase em suas entranhas.
E essa necessidade tão feminina provocava-lhe um rancor imenso, um
ódio irracional ao belo, ao esteticamente ornado pelos deuses. Ela,
algumas vezes, blasfemava.]
[O
corredor do ônibus lhe serviu como passarela. Procurou um lugar para
sentar, mas não encontrou. Parou no meio do corredor, próximo de
uma senhora que ofereceu-lhe segurar sua bolsa. “Obrigada”. O
homem que lia um jornal no banco atrás da senhora gentil a observou
e fez aquela inspeção masculina quando diante de curvas impecáveis.
Ele percebeu que os pelos das pernas da mulher estavam arrepiados e a
luz do sol, fraca, valentemente abria caminho por entre pernas e
pastas iluminava suas pernas como a indicar no palco o protagonista
de uma peça teatral, como a revelar à humanidade o sentido de ser
de todos os homens.]
[Um
homem cochilava no banco da outra coluna aproveitando o balançar do
ônibus e sonhava com a última viagem que fizera com a menina do
terceiro andar e que a bordo de uma jangada deslizavam no mar
de portodegalinhas, foi desperto pela batida de uma pasta em seu
joelho, o jangadeiro dizendo-lhe: “Aqui é um bom lugar para
mergulhar e ver as maravilhas...”]
[O
sonhador pegou seu celular e conferiu as horas. Um vento da janela
lateral bateu-lhe no rosto como um leve tapa a chamar-lhe a atenção
para o outro lado. Ele virou-se e viu as costas daquela bela mulher,
os olhos desceram deslizando sobre o corpo dela, fizeram parada em
sua bunda perfeita e o traço em V da minissaia servia como seta
direcional a um lugar de infinitos prazeres.]
[Sua
primeira intenção era oferecer-lhe seu lugar, mas ao meditar
ligeiramente percebeu que se privaria daquela visão em nome de uma
norma social antiquada. Pensou: “As mulheres estão mais
independentes e ela poderia receber aquela gentileza como uma atitude
machista.” Resolveu: “Não, melhor deixá-la ali em pé como um
ornamento a esse caos.”]
[A
mulher estava à sua direita e a cada curva mais acentuada para o
mesmo lado, as engrenagens do veículo forçavam a bela se empinar e
o que era espetacular se tornava sublime.]
[O
ônibus enchia e sua visão ia sendo atrapalhada pela multidão que
começava a ocupar desordenadamente os espaços imaginários. Um
homem gordo fechou-lhe a única brecha que existia entre o caos e a
beleza. No entanto, a imagem já estava fixa em sua mente e mesmo com
a visão tampada a memória insistia em lembrar-lhe das pernas, da
bunda, das curvas daquela bela mulher.]
[Lembrou
de um livro ou seria um filme… Não tinha certeza. Um homem que era
capaz de qualquer coisa para alcançar o essencial da vida, melhor,
era algo mais poético, mais filosófico; um homem que era capaz das
maiores atrocidades sociais, capaz de infringir qualquer código
moral social em nome de um bem maior.]
[Essa
lembrança o agitou por dentro. Sentiu um formigamento na pele e o
coração acelerar. Sentiu-se o homem mais corajoso do mundo e
nenhuma barreira moral era superior a esse sentimento. A moral dos
fracos e a moral dos fortes. Ele sentia-se forte. E pensou mesmo: “A
vida consiste na escolha dessas duas morais: a fraca e a forte.”
Escolhera a forte.]
[Pegou
o celular, clicou na câmera, mudou para gravar e aproveitando-se do
balançar eterno da barca do inferno passou o braço em meio a pernas
e pastas até alcançar uma posição perfeita sob a minissaia da
bela. Virou a câmera para selfie e
clicou no botão vermelho. Chegou a pensar: “Ação!” A câmera
registrava cenas que só seriam possíveis na intimidade daquela
mulher. Agradeceu aos deuses da tecnologia e aos filósofos imorais.
Aquela atitude levava sua adrenalina a níveis altíssimos e pensou:
“Ah, loucura, mas que coisa gostosa, que coisa perigosa! Ah, como
me sinto vivo!”]
[A
mulher sentia um êxtase que não conseguia explicar. Êxtase
provocado pelos olhares maliciosos masculinos e reprovadores das
mulheres. Parecia que deuses antigos da fertilidade, vez ou outra,
visitavam a pós-modernidade para lembrar aos homens e às mulheres
os cultos orgíacos do passado remoto. O ônibus seria o templo de
alguma diana. As pessoas ali espremidas seriam os fiéis. Algumas
sacerdotisas austeras. Os homens, todos os homens, eram estrangeiros
de passagem. O motorista era o único nativo e servo que podia cuidar
do santuário como um zelador
conservava a nave sempre preparada para as orgias
divinas.]
[E
diana soprou-lhe em seus
ouvidos e a mulher sentiu um calafrio que subia pelas suas pernas.
Olhando para baixo viu a imagem de seu sexo na câmera que,
obedientemente, cumpria as ordens do homem. A
imagem de si mesma, dos contornos mais belos e desejáveis por todos
os homens daquela nave despertou na bela sua sensualidade. Sua mente
guiada pela moral dos seus dias a reprovava, pedia-lhe que fizesse um
escândalo, que denunciasse o agressor e invasor, que gritasse os
bordões histéricos da meninada feminista; mas diana a acalmou.]
[Uma
voz suave perpassava em sua cabeça: “Não, não reaja. Você é um
sacrifício aos deuses e deusas que os homens esqueceram. Você é um
ser celestial, sua beleza é dádiva e toda dádiva deve ser
compartilhada.]
[Diana
continuava: “O que você sente em saber que homens desconhecidos
irão se deliciar com sua imagem? Quantos jovens vão se esgotar de
prazer ao contemplar suas curvas enquanto se masturbam! Isso não lhe
enche de êxtase, mulher? Isso não lhe revela o porquê da
existência? Isso não lhe traz a vida de volta em meio a esse
trágico e entediante cotidiano?”]
[A
mulher convencida filosófica e moralmente por diana entrega-se
completamente à volúpia.]
[O
homem percebendo que o ônibus começava a se esvaziar, habilmente
recolheu o braço. Conferiu a gravação. “Perfeita!”]