quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Diana




[Ela subiu no ônibus e os homens a olharam. Vestia uma minissaia e as pernas, ainda femininas, sem ainda sofrer a mutação dos ferros de academia, roçavam uma na outra fazendo um barulhinho que excitaria o monge mais radical – se é que ainda pode-se encontrar monges que apreciem o sexo oposto.]

[Ela sentia os olhares invasivos dos homens. Podia mesmo senti-los tocando em seu corpo e essa sensação era uma mistura de escândalo e êxtase. Até porque as duas sensações são irmãs inseparáveis.]

[Passou pela roleta sob o olhar reprovador da trocadora gorda e desprezada por aqueles olhares invasivos. Há tempos aquela mulher rancorosa não se escandalizava ou, até mesmo, sentia o êxtase em suas entranhas. E essa necessidade tão feminina provocava-lhe um rancor imenso, um ódio irracional ao belo, ao esteticamente ornado pelos deuses. Ela, algumas vezes, blasfemava.]

[O corredor do ônibus lhe serviu como passarela. Procurou um lugar para sentar, mas não encontrou. Parou no meio do corredor, próximo de uma senhora que ofereceu-lhe segurar sua bolsa. “Obrigada”. O homem que lia um jornal no banco atrás da senhora gentil a observou e fez aquela inspeção masculina quando diante de curvas impecáveis. Ele percebeu que os pelos das pernas da mulher estavam arrepiados e a luz do sol, fraca, valentemente abria caminho por entre pernas e pastas iluminava suas pernas como a indicar no palco o protagonista de uma peça teatral, como a revelar à humanidade o sentido de ser de todos os homens.]

[Um homem cochilava no banco da outra coluna aproveitando o balançar do ônibus e sonhava com a última viagem que fizera com a menina do terceiro andar e que a bordo de uma jangada deslizavam no mar de portodegalinhas, foi desperto pela batida de uma pasta em seu joelho, o jangadeiro dizendo-lhe: “Aqui é um bom lugar para mergulhar e ver as maravilhas...”]

[O sonhador pegou seu celular e conferiu as horas. Um vento da janela lateral bateu-lhe no rosto como um leve tapa a chamar-lhe a atenção para o outro lado. Ele virou-se e viu as costas daquela bela mulher, os olhos desceram deslizando sobre o corpo dela, fizeram parada em sua bunda perfeita e o traço em V da minissaia servia como seta direcional a um lugar de infinitos prazeres.]
[Sua primeira intenção era oferecer-lhe seu lugar, mas ao meditar ligeiramente percebeu que se privaria daquela visão em nome de uma norma social antiquada. Pensou: “As mulheres estão mais independentes e ela poderia receber aquela gentileza como uma atitude machista.” Resolveu: “Não, melhor deixá-la ali em pé como um ornamento a esse caos.”]

[A mulher estava à sua direita e a cada curva mais acentuada para o mesmo lado, as engrenagens do veículo forçavam a bela se empinar e o que era espetacular se tornava sublime.]

[O ônibus enchia e sua visão ia sendo atrapalhada pela multidão que começava a ocupar desordenadamente os espaços imaginários. Um homem gordo fechou-lhe a única brecha que existia entre o caos e a beleza. No entanto, a imagem já estava fixa em sua mente e mesmo com a visão tampada a memória insistia em lembrar-lhe das pernas, da bunda, das curvas daquela bela mulher.]

[Lembrou de um livro ou seria um filme… Não tinha certeza. Um homem que era capaz de qualquer coisa para alcançar o essencial da vida, melhor, era algo mais poético, mais filosófico; um homem que era capaz das maiores atrocidades sociais, capaz de infringir qualquer código moral social em nome de um bem maior.]

[Essa lembrança o agitou por dentro. Sentiu um formigamento na pele e o coração acelerar. Sentiu-se o homem mais corajoso do mundo e nenhuma barreira moral era superior a esse sentimento. A moral dos fracos e a moral dos fortes. Ele sentia-se forte. E pensou mesmo: “A vida consiste na escolha dessas duas morais: a fraca e a forte.” Escolhera a forte.]

[Pegou o celular, clicou na câmera, mudou para gravar e aproveitando-se do balançar eterno da barca do inferno passou o braço em meio a pernas e pastas até alcançar uma posição perfeita sob a minissaia da bela. Virou a câmera para selfie e clicou no botão vermelho. Chegou a pensar: “Ação!” A câmera registrava cenas que só seriam possíveis na intimidade daquela mulher. Agradeceu aos deuses da tecnologia e aos filósofos imorais. Aquela atitude levava sua adrenalina a níveis altíssimos e pensou: “Ah, loucura, mas que coisa gostosa, que coisa perigosa! Ah, como me sinto vivo!”]

[A mulher sentia um êxtase que não conseguia explicar. Êxtase provocado pelos olhares maliciosos masculinos e reprovadores das mulheres. Parecia que deuses antigos da fertilidade, vez ou outra, visitavam a pós-modernidade para lembrar aos homens e às mulheres os cultos orgíacos do passado remoto. O ônibus seria o templo de alguma diana. As pessoas ali espremidas seriam os fiéis. Algumas sacerdotisas austeras. Os homens, todos os homens, eram estrangeiros de passagem. O motorista era o único nativo e servo que podia cuidar do santuário como um zelador conservava a nave sempre preparada para as orgias divinas.]

[E diana soprou-lhe em seus ouvidos e a mulher sentiu um calafrio que subia pelas suas pernas. Olhando para baixo viu a imagem de seu sexo na câmera que, obedientemente, cumpria as ordens do homem. A imagem de si mesma, dos contornos mais belos e desejáveis por todos os homens daquela nave despertou na bela sua sensualidade. Sua mente guiada pela moral dos seus dias a reprovava, pedia-lhe que fizesse um escândalo, que denunciasse o agressor e invasor, que gritasse os bordões histéricos da meninada feminista; mas diana a acalmou.]

[Uma voz suave perpassava em sua cabeça: “Não, não reaja. Você é um sacrifício aos deuses e deusas que os homens esqueceram. Você é um ser celestial, sua beleza é dádiva e toda dádiva deve ser compartilhada.]

[Diana continuava: “O que você sente em saber que homens desconhecidos irão se deliciar com sua imagem? Quantos jovens vão se esgotar de prazer ao contemplar suas curvas enquanto se masturbam! Isso não lhe enche de êxtase, mulher? Isso não lhe revela o porquê da existência? Isso não lhe traz a vida de volta em meio a esse trágico e entediante cotidiano?”]

[A mulher convencida filosófica e moralmente por diana entrega-se completamente à volúpia.]

[O homem percebendo que o ônibus começava a se esvaziar, habilmente recolheu o braço. Conferiu a gravação. “Perfeita!”]

[Chegando ao centro, a bela mulher pegou sua bolsa com a mulher gentil. “Obrigada.” Dirigiu-se para a porta dianteira da nave sob os olhares dos estrangeiros e da severidade das sacerdotisas. Desceu e reiniciou sua missão de fazer prosélitos. Seu celular tocou e ela atendeu. “Alô.” “Alô, Diana, já está chegando?” “Sim, dona Sofia, o ônibus atrasou.”

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Destino




Ele dizia que estava disposto a quase tudo, mas jamais mataria ou traficaria drogas ilegais.
- O senhor entende, não? Tenho minha honra. Pode contar comigo, pois tenho uma família para alimentar, o senhor sabe, não sabe? Lembra do Gregório? Lembra que cumpri suas ordens tal qual o senhor orientou? O senhor disse: “Um corretivo nesse nêgo!”. E aí fui eu e o Zé Pilintra, lembra? Moemos o neguinho. Deu até dó, mas não matamos. Então, patrão, pode contar comigo; mas peço sua compreensão nesses assuntos de honra.
O patrão sabia que podia contar com ele. Pedia meramente que respeitasse sua dignidade. Não poderia ter a consciência em paz se tivesse a mão suja de sangue ou ter levado jovens à dependência de drogas. Quanto às cobranças de dívidas e corretivos era imediatamente voluntarioso. Certa vez confidenciara ao Pilintra que sentia certo prazer em dar umas porradas nesses desgraçados.
- Sabe, Zé, a gente que não é nada nessa vida, quando tem a oportunidade de demonstrar autoridade, ainda que delegada pelo patrão, dá um certo orgulho, não? É gostoso ter nas mãos esse poder, ainda que seja por algum momento. Olhar nos olhos do desgraçado e ver o pânico, o terror, o pedido de misericórdia, ah, como isso faz bem! Depois de moer o pobre a gente perdoa e sai. Quando o sujeito nos encontra é como se tivesse vendo uma mistura de deus e diabo. Zé, não existe nada mais prazeroso que ter a vida de alguém em suas mãos e depois decidir que ele pode viver.
Desde o primeiro dia que o patrão o conhecera, na porta de uma padaria pedindo esmola, sabia que ele era o homem certo. Ele ainda era jovem, mas não tinha vergonha de se expor ali diante daqueles burgueses e, junto com seu filho, humilhar-se. O patrão sabia que um homem preguiçoso e em grande necessidade preenchia todos os requisitos que precisava. Era só questão de tempo.
- Eu jamais disse não ao senhor, patrão, mas o que está me pedindo é algo difícil para mim. O Jadir e o Tenório aceitarão isso com certeza. Mas, eu... O senhor sabe, a minha honra... minha consciência.
O patrão apresentou-lhe os termos. Sobre a mesa deixara um trinta-e-oito, uma foto e um endereço. Antes de sair, disse-lhe:
- É isso ou retornar à mendicância.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

"O quê?" ou "O dia que saí para ver a montanha."




- O quê?
Esse “o quê?” dela era irritadiço. Tinha a sua frente o notebook e vários livros. Sua mente então concentrada no aprofundamento das letras diversas era suspensa por uma intromissão qualquer. Uma intromissão que não tinha relação com seu aprofundamento ensimesmado.
- O quê?
Dava para ver em sua face o mal-estar provocado pela interrupção dos seus movimentos cerebrais. E a coisa ficava pior porque não era apenas o cérebro que trabalhava, mas o coração também. E aquela interrupção afetava a bomba de sangue. O sangue diminuía sua fluidez e sua respiração mudava. Ela precisava estar tensa, pois as letras provocam isso. Mas a interrupção tinha o objetivo de lhe tirar daquela tensão e transportá-la para tensões alheias.
- O quê?
- Esquece...
- Não, pode falar.
- Esquece, nada de importante, depois te falo.
- Tá, ok.
Resolvi sair e ir até à montanha. Já a avistava de longe. Não tem chovido, mas seu mato ainda está verde. Um verde de verdade. Um verde que ainda resiste. E ela deslizava como cascata e repousava se esparramando num lago qual espelho. Sua imagem era refletida no lago e parecia haver um outro mundo lá dentro. Um mundo mais sereno, calmo. Os seres do lago viviam uma paz diferente, uma indiferença total às coisas do lado de cá. Mas ainda esse pedacinho do mundo real era bonito e admirável.
Na beira da estrada bebi café adoçado com rapadura. Voltei para casa contornando outras montanhas, outros lagos. Talvez o prolongamento da mesma montanha e do mesmo lago. A lua já aparecia e me acompanhava.
Cheguei em casa. Passei pelo seu quarto. A porta estava entreaberta. Vi seu corpo curvado, seus olhos inchados, sua face vermelha.
- Entra.
Entrei e conversamos.

A primeira edição

          Assim se deu o diálogo entre dois velhos amigos: - É apenas um livro. - Não, não é apenas um livro, mas a primeira e...