sexta-feira, 28 de julho de 2017

Whatever...




Entrou no bar e deu um soco no Armando. Chegou o pessoal do “deixa disso”, mas quando viram que era ele, se dispersaram. Armando se levantou com certa dificuldade sem nenhuma ajuda do pessoal do “deixa disso” e saiu do bar. Ele bebeu uma cerveja, uma caipirinha, comeu um pastel, um ovo rosa e meteu a mão na bunda da Ângela. Ele saiu do bar e foi para casa.
Ele chegou em casa, tirou os sapatos, espalhou as roupas pela sala. Ligou a TV e assistiu a uma luta de MMA. Xingou, abriu uma cerveja. A mulher levantou e pediu que diminuísse o som e parasse de berrar como um bárbaro. Ele riu e disse que depois mostraria-lhe o bárbaro na cama. A mulher riu e virou-se deixando a mostra a lingerie nova e sensual. Ele desligou a TV, pegou a mulher e a levou para o quarto. Ele fez amor com a mulher.
Saiu de manhã, pegou o carro e cruzou com o Armando no sinal. “Da próxima vez te mato, Armandinho!” Chegou ao trabalho, bebeu um cafezinho, discutiu sobre a luta de ontem com os colegas de trabalho. Os colegas de trabalho disseram a ele que sábado próximo será o churrasco da chefia. “Não é pra levá as esposa, hein!” Saiu mais cedo e comeu a Lurdinha.
Ele voltou para casa, tirou os sapatos, espalhou as roupas pela sala e viu um bilhete sobre a mesa da cozinha. Era um bilhete da mulher.
Tô na casa do meu pai, quando chegar me liga. Teu prato está pronto na geladeira, esquenta no microondas. Beijos.
Comeu, tomou banho, masturbou-se e saiu. Ele ligou para a Lurdinha, mas ela estava em casa com o marido. Ele ligou para a Priscila, mas só deu caixa postal. Ele ligou para o Armando e foram tomar uma cerveja.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Decisão




- Carlos. Carlos, você está me ouvindo?
- Sim, senhor.
- Desculpe-me ligar essa hora, mas preciso que você esteja pronto amanhã, às nove horas para viajar. Estou com sua passagem, mas vou emiti-la direto para a companhia. Basta você estar no aeroporto às nove horas e se identificar no check in. Carlos, você entendeu?
- Entendi, sim, senhor.
- Olha, não esqueça de levar o material, ok?
- Ah, sim, o material. Vou levantar e arrumar tudo.
- Não, não precisa, ainda é cedo, vá dormir.
- Durmo no avião.
- Ok. Obrigado, Carlos. Carlos, o material viaja como bagagem de mão. Não esqueça.
- Sim, eu sei. Pode deixar. Vou fazer um café e me preparar.
- Ok. Então tá combinado. Os procedimentos são os mesmos, apenas tive que antecipar a viagem. A grana estará em sua conta amanhã de manhã, já fiz a transferência. Hotel, ok. Obrigado, Carlos.
- Ok, senhor.
- Boa viagem e até semana que vem.
- Até.
Todas as pessoas têm a chance de tomar a decisão de sua vida. O difícil é saber qual o momento exato para tomá-la. Carlos sentia esse peso a cada momento. Algumas vezes pensou ser o momento ideal, mas depois de meditar bastante mudava de opinião e prorrogava a tomada de decisão. Passou um tempo sem se preocupar com isso, mas naquele momento, na cozinha, enquanto esperava a água do café ferver, voltou a cogitar a situação. Sua mente divagava agora, mas o apito da chaleira o trouxe de volta. A água fervendo passando pelo café, o cheiro do café o levou à infância. Ouviu a voz de seu pai: “Carlinho, Carlinho, presta atenção, filho... Olha, filho, tem que estar preparado para quando a bola for lançada em sua dire...”
- Carlos Xavier. Não, essa bolsa é bagagem de mão. Obrigado. Portão...
Carlos checou sua conta. Dinheiro, ok. Ligou para o hotel. Hotel, ok. Meditava sobre a vida. Vida, ok? Havia dúvidas ainda. Receios. Mas alguma coisa o incomodava. Um incômodo gostoso, pois colocava fogo em seu espírito. Ansiedade. Tomar a decisão. Checou novamente o material. Material, ok. Seu celular vibrou no bolso da calça, assustou-se. Era o chefe.
- Carlos? Tudo bem?
- Sim, senhor. Tenho que desligar, tô embarcando.
- Ok, boa viagem. Conferiu o voo? Tudo, ok? Parece que o voo é 0 190...
Carlos desligou. O chefe pensou que perdera o sinal. Mandou-lhe um sms.
- 7.
Carlos embarcou no voo 990... e sumiu.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Precisa-se de teólogo




“Precisa-se de Teólogo”
Dizia a placa na entrada de uma grande igreja evangélica. Só poderia ser um sinal. Na verdade, ele já não acreditava mais nessas coisas de sinal, milagres, etc. Mas aquele anúncio o pegou de surpresa. Jamais vira em todos seus cinquenta anos uma placa que oferecia vaga para teólogo e numa igreja evangélica. Resolveu entrar. Ele aproximou-se de um senhor que limpava o santuário.
- Bom dia, senhor. Meu nome é Carlos e gostaria de me candidatar à vaga de teólogo.
- Bom dia. Espera um minuto. - O velho tirou do bolso um celular e discou os números. Se afastou para ter um pouco de privacidade. Carlos observava a conversa do velho com alguém do outro lado do celular. O velho tinha uma risadinha chata, de hiena. Aquela risadinha deixou Carlos preocupado, mas assim que pensou em desistir o velho desligara o celular e disse-lhe: - Está vendo aquela placa vermelha? Ali tem uma escada. Pode subir e no corredor entre pela segunda porta a direita. O reverendo irá recebê-lo. - Carlos agradeceu e subiu as escadas.
No corredor, Carlos teve um mal pressentimento. Ele era escuro. Na verdade ele tinha uma iluminação bem fraca e podia ouvir o som de um órgão. O cenário parecia de um filme b de terror. As cruzes sem cristo nas paredes davam um tom a mais de terror no cenário. Passou pela primeira porta que tinha uma janelinha, mas o interior da sala totalmente escuro. Chegou à segunda porta e pôde ouvir que o som do órgão vinha dali de dentro. Bateu na porta e ouviu uma voz rouca lá de dentro: - Pode entrar. - Carlos entrou e viu que estava num tipo de sala de espera. Mais iluminada. Uma janela que dava para a rua dos fundos da igreja. Foi até a janela e respirou fundo o ar poluído de lixo. Olhou para baixo e viu os latões.
- Bom dia. - A voz rouca e feminina assustou Carlos. - Desculpe-me se te assustei. Meu nome é Sandra, secretária do reverendo. Ele já vai atendê-lo. Veio para a vaga de teólogo, não?
- Sim. Mas não trouxe nenhum documento. Ia passando pela porta da igreja e vi o anúncio. Então resolvi pegar mais informação.
- Ah, entendo. Não tem problema, o reverendo te explicará tudo. Aceita um café? Não? Água? Não? OK, pode se sentar, o reverendo está terminando seu devocional.
Devocional. Carlos lembrou dos dias de seminário de teologia. Não sabia que ainda reverendos cultivavam devocionais. O telefone tocou, Sandra atendeu e depois de algumas palavras desligou. Virou-se para Carlos e disse: - Pode entrar, o reverendo o aguarda.
- Obrigado.
O reverendo era um sujeito alto e gordo. Cabelos grisalhos, bigodes grisalhos. Os grisalhos não lhe concediam mais idade, mas lhe davam um certo charme de meia idade. Vestia um terno sem o paletó. Ele estava de pé atrás de uma grande mesa de madeira e na frente de uma grande estante repleta de livros. O olhar do reverendo revelava muita leitura. Sua testa vincada revelava muita meditação. Carlos pensou por um instante que aquela igreja não precisava de um teólogo, pois aquele sujeito esbanjava sabedoria e saúde.
- Bom dia, reverendo, meu nome é Carlos e...
Sem deixá-lo terminar a apresentação, o reverendo emendou: - Bom dia, Carlos. Seja bem-vindo! Viu a placa lá na entrada e deve ter estranhado, não?
Carlos meditou uns instantes e percebeu que não adiantava dissimular. - Sim, reverendo, para ser sincero...
Novamente o reverendo o interrompeu. - Sem formalidades, Carlos. Me chame de Luiz.
- Ah, sim. Bem, Luiz, para ser sincero nunca vi numa igreja uma oferta de trabalho para teólogo. E vendo agora sua sala, parece que o senhor, quer dizer, você é um estudioso.
- Sim. E daí você concluiu que uma vaga para teólogo seria contraditória?
- Bem, não quis ofendê-lo, mas...
- Não, Carlos, você não me ofendeu. Não sou o tipo de homem frágil que se ofende. Apenas deduzi o que você deduziu. Mas, sim, precisamos de um teólogo. Não desses teólogos idiotas que os seminários nos mandam. Mas precisamos de um teólogo corajoso, com opinião. Entende? Temos uma porção de teólogos na igreja que fazem o mais do mesmo. Precisamos de um sujeito ousado. Você tem ousadia, Carlos?
Carlos não esperava aquela pergunta e não sabia como respondê-la. Ficou em silêncio e esperou uma nova interrupção do reverendo. Dessa vez, Luiz apenas fuzilava Carlos com seus olhos azuis. E só agora, Carlos percebera que os olhos eram azuis. Então, Carlos teve que falar.
- Bem. Não sei que tipo de ousadia vocês procuram. - Carlos encontrou uma resposta satisfatória, pois não o comprometia.
- Ousadia de ofender as pessoas.
- Ofender as pessoas?
- Sim. Nossa igreja está repleta de teólogos que massageiam egos, que são extremamente tolerantes. Precisamos de um contraponto, entende, Carlos? Precisamos do contraditório!
A voz do reverendo agora alcançava notas mais altas e graves.
- Entende agora por que colocamos uma placa? Colocamos uma placa de oferta de emprego para que alguém de fora venha e não nos mandem os mesmos tolos de seminários. Teólogos treinados para manterem o estado de coisas. Olha, Carlos, eu também já fui como esses jovens idiotas teólogos, mas me cansei. Ser igual é cansativo. Ser o mesmo é o verdadeiro e único inferno.
- Sim, entendo. Mas você não é o reverendo? Já não faz o contraponto? Por que precisa de mais um?
- Ah, finalmente você chegou à questão. Veja bem, Carlos. Faremos uma dupla. Dissimularemos. Provocaremos. Vamos começar entre nós. Eu afirmo isso e você afirmará o não-isso. Chegaremos a exaustão da discussão. Os teólogos idiotas tomarão partido por mim ou por você, entende? Dividiremos. Sacudiremos. Os corações precisam ser sacudidos, As mentes precisam estar revoltas em si mesmas. Você está entendendo, Carlos?
- Sim, Luiz, sim. Levaremos todos eles, toda a igreja à exaustão de si mesmos!
- Isso, Bravo!
- E ao alcançarem a exaustão extrema provarão a cruz. Provarão o sangue escorrendo pela boca. As veias dilatadas. As mãos e os pés sangrando. E dirão: “onde erramos, Senhor?”
- Isso, Carlos, você realmente entende! A exaustão exacerbada do corpo alcança o espírito! E precisamos alcançar o espírito para que esses idiotas acordem!
- Sim, entendo, Luiz! Quero a vaga. Essa vaga é minha.
- Sim, é sua, Carlos. Não aguentava mais te esperar.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Incômodo




“Todos os livros são bons, até o momento em que você abre dostoiévski.”
Pensei alto. Não, não saiu nenhum som involuntário de minha boca, mas a mocinha do caixa sorriu para mim como se tivesse percebido alguma coisa pelos traços de meu rosto provocado pelo pensamento alto.
- São sessenta e nove reais e noventa centavos, senhor.
Ela continuou com um vago sorriso que escorria por um dos cantos de seus lábios. Parecia que queria me falar alguma coisa, alguma coisa impulsiva que era controlada pelo olhar austero do gerente. Um sujeito grandalhão com cara de “poucos amigos” para os funcionários e um grande dissimulador de “simpatia” para os clientes que compravam. Eu recebi as duas caras do gerente porque estava próximo da mocinha do caixa. Alguma coisa a incomodava. Alguma coisa sempre está nos incomodando. Até mesmo o gerente “caxias” tem algum incômodo.
- O senhor possui nosso cartão fidelidade?
- Não.
- Não? Gostaria de fazer o cadastro e acumular pontos nas compras, senhor?
Aquele “senhor” já estava me incomodando, mas parecia que ela queria me incomodar com o que a incomodava. Resolvi gastar mais alguns minutos com ela, dando-lhe oportunidade de falar.
- OK, o que você precisa?
- Apenas o seu ce-pê-efe, senhor.
- OK.
Fiz o cadastro e nada mais. Ganhei os pontos pela compra de dostoiévski e saí. Talvez interpretei errado a mocinha. Fui tomar café com um amigo.
- Por que essa mania de comprar sempre uma nova edição de crime e castigo?
- Ora, você sabe que eu gosto. Cada um coleciona o que lhe agrada.
- Sei.
Quando cheguei em casa peguei dostoiévski e coloquei ao lado das outras edições. Uma ponta da folha se projetava para fora do livro novo. Aquilo me irritava. Abri o livro e um papelzinho caiu da página cinquenta-e-um. Havia algo escrito no papelzinho. Letra feminina. Letra da mocinha do caixa. Senhor, desculpe-me o atrevimento. Estava lhe observando na loja e vi que tem um gosto diferenciado para literatura. Eu tenho um blog... Ela me pedia para ler seus escritos literários em seu blog e gostaria de saber se deveria continuar escrevendo ou desistir e se render à austeridade do gerente. Li. No papelzinho tinha o seu celular. Mandei-lhe uma mensagem: Rose, não pare de escrever. Carlos, o cara do dostoiévski.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Deus gosta di proseá




- Ô, Tonho, tava pescano nada. Pelei pru santo e num diantô. Óia que num trusse nadica.
- Pelô errado, Tião. Num dianta pelá pra santo, ômi. Num sabe que santo é ômi como nóis?
- Ara, Tonho! Mas santo tá mais perto di deus, caboco.
- Tá nada, capiau. Tá tudinho di debaxo da terra. Pelô pra nada, Tião. Tem que pelá pra deus, cabra.
- E tu agora tá mitido em batina de seminarista, ômi?
- Num é nada disso, caboco. Num credito mais nessas coisa di santu, num sabe? Fica im casa sem trabaiá e vê si santu ajuda? Sai pra trabaiá e vê si santu ajuda? O qui ajuda, ômi, é nosso isfôrsso, num sabe?
- Eita, Tonho, tu tá virado...
- Tô virado, não, ômi. Eu tô cum os ói aberto.
- Tô veno, mas toma cuidado cum esses pensamento, sô. Issu num é bom. Um primo meu lá da cidade cumessou assim. Ôje num credita mais im nada.
- Num carece di preocupá dissu, não, cumpadi. Meu casu é ôtro. Tô cansado é dus santu. Issu é uma cambada de parasita, num sabe?
- Eita qui a coisa é séria memo. Cumpadi, você já pensô em falá cum padre Afonso?
- E é cum esse memo qui num falo mais. Me passô um sermão e mandô fazê reza. Saí chutano pedra em mindingo.
- Virgem mãe santíssima, cumpadi!
- Eu prucurei a mãe Joana.
- A ispirita, ômi?
- Essa memo, Tião. A mema ladainha, num sabe? Só muda di nomi. O padre fala di santu, ela falava de intidade.
- E aí, cumpadi, qui tu fez?
- Ara, cumi as pipoca e fui s’imbora.
- Eita! Tu cumeu as pipoca du santu?
- Cumi, ispirito num comi, ara!
- Eita que cumpadi Tonho tá endoidado da cabeça!
- Tô não, ômi. Eu tô é curado.
- Sei não, ômi. Daqui im pôco num credita mais nem im deus.
- Ah, não cumpadi. Em deus sempre credito. Deus é mais discretu, num sabe?
- E é?
- É sim. Ele num prometi nada. Ele criou essi mundão e deu as ordem. E num tem santu, num tem ispirito qui muda issu, Tião. Tem não.
- Eita qui falô bunitu, Tonho!
- Ara, e falei é?
- E pruquê cumpadi pédi as coisa pra deus? Cumpadi num dis qui deus é discretu e num prometi nada?
- Pesso nada, não, Tião. Sigo só conversano com ele. Só conversano, num sabe? Deus gosta di proseá.

terça-feira, 11 de julho de 2017

A tatuagem




Atílio acordou e sentiu uma dor no braço. Arregaçou a manga longa da camisa e viu, ainda vermelho de sangue, o número sete tatuado em seu braço. Atílio não era daqueles que se admiravam com coisas esquisitas, com coisas que fugiam ao cotidiano. No entanto, aquele número tatuado em seu braço o fez percorrer os labirintos de sua memória, pois não se lembrava de ter feito tal tatuagem.
Atílio tomava café na cozinha enquanto folheava o jornal. Quando passava pela seção de medicina e saúde se lembrou da tatuagem. Arregaçou a manga do paletó e a viu de novo, com menos sangue. A cor negra agora era mais forte e os contornos do número sete mais nítidos. Chegando à seção policial começou a investigar de como teria se dado aquilo. Várias hipóteses se apresentavam em fila indiana ao seu pensamento inquiridor. Ria de algumas e outras as achava possíveis.
No sinal vermelho esperava o sinal verde enquanto assistia um sujeito cuspindo fogo na frente dos carros. Pensou no fogo. “Será que sai com fogo?” Lembrou de Marcílio, seu amigo bombeiro. Talvez lhe telefonasse e perguntaria se o fogo resolveria. Com fogo se faz muita coisa. O que seria de nós sem o fogo. O sinal vermelho apagou e o sinal verde acendeu. O cuspidor de fogo recebeu algumas moedas e os carros seguiram.
No trabalho conversava com Ângela.
- Por que o número sete?
- Não sei, quando acordei estava aí, em meu braço.
- Como assim? Como uma tatuagem aparece assim, Atílio?
- Sei lá, não me lembro. E é coisa recente, pois ainda dói.
- Dói? O que você fez ontem?
- Nada, ora. Jantei, vi tv e fui dormir.
- Bem, a tatuagem discorda do que você diz.
- Como assim?
- Por que você não vai ao médico? Tenho um amigo psiquiatra muito bom. Anota o número dele.
- Tá.
Depois do almoço, Atílio foi ao banheiro e esfregou álcool sobre o número sete. Nada. Ele não ligava, talvez estivesse em transe com alguma mulher e não lembrava. Atílio não era dependente químico, mas em algumas festas já perdera a razão por alguns momentos em meio a pequenas orgias.
Atílio jantava na sala e via tv. Ignorou algumas mensagens para beber e para curtir a noite. Ficaria em casa sóbrio por algum tempo até entender, ou melhor, se lembrar o porquê da tatuagem. Desligou a tv e foi para a cama, dormiu. Na manhã do dia seguinte, o celular despertou Atílio. A dor no braço voltara. Levantou-se, foi ao banheiro, acendeu a luz, arregaçou a manga longa de sua camisa e viu, ainda vermelho de sangue, o número seis tatuado.

O fazedor de letras




- O que você faz?
- Faço letras.
- O curso?
- Não. Letras mesmo.
- Ah, sim. Um fazedor de letras. Trabalha em publicidade?
- Não. Bem, já trabalhei, mas hoje só faço letras, mesmo.
- E dá pra viver disso?
- Sim. Dá pra terminar de viver fazendo letras.
- Hum... Mas me referia a dinheiro...
- Ah, sim. O maldito dinheiro, né? Não, faço letras por prazer, pra mim mesmo. O dinheiro vem de outra atividade.
- Esperto. Garantiu a grana e agora vive de prazer.
- Mais ou menos.
- E por que escolheu as letras?
- Porque elas proporcionam mais liberdade e preciso de liberdade.
- Liberdade?
- Sim. Veja os números. Eu poderia optar pelos números, mas eles seguem à risca o imperativo categórico de Kant.
- Imperati...? Categóri...? Cánt?
- Esquece isso. Olha, os números são muito corretos e não deixam margem para discussão. Na verdade eles acabam com qualquer discussão, qualquer diálogo. Eles fazem tudo ser conclusivo. Eles finalizam.
- Finalizam?
- Sim, veja. Em todas as conversas no mundo todo, três mais dois sempre será cinco. E fim.
- É verdade. E as letras? Elas também seguem regras, não?
- Sim, regras rígidas de acadêmicos parasitas. Regras feitas por letras escritas pelas mãos de parasitas. Mas sempre há a literatura marginal, alternativa, rebelde, etc. Veja que até mesmo o “etc” é infinito.
- Como os números...
- Sim, como os números. Mas os números são infinitos na mesmice e as letras são infinitas em novidades.
- Bonito isso.
- Sim, acho belo mesmo. As letras são a beleza do mundo. Os números são a concretude, a dureza desse mundo. Não há poesia em estatísticas, em comprimentos, em unidades, dezenas, milhares. As letras dão sentido à vida. Os números ignoram os sentidos, apenas relatam friamente os fatos. As letras são usadas em todas as áreas de conhecimento, adaptável, contraditória, revolucionária, conservadora, religiosa, iconoclasta, romântica, em resumo: elas são tudo.
- Difícil não concordar. Mas os números são necessários.
- Absolutamente, mas sem as letras, eles fariam com que a existência fosse insuportável.

sábado, 8 de julho de 2017

A religião é um canto...




- Você na missa? Você não é agnóstico?
- Sim. Não.
- Sim e não?
- Sim, sou eu na missa. Não, eu não sou agnóstico.
- Ah, entendi. Como não é agnóstico? Você vive criticando a igreja, o clero e os fiéis.
- Sim, é verdade. Mas o agnosticismo não tem relação com essas amenidades humanas. O agnosticismo é uma dúvida racional sobre a existência ou não de deus ou deuses.
- Ah, sim. É o sujeito que fica em cima do muro, não?
- Bem, não o vejo assim. Acho até mesmo um sujeito razoável. Um sujeito pragmático que não quer se comprometer com coisas que não têm respostas ou resposta.
- Sei, apenas uma maneira bonita de se referir a ficar em cima do muro. Mas o que você faz aqui, na igreja durante a missa já que critica tanto os religiosos?
- Sim, parece uma auto-contradição, não? Bem, não parece, na verdade é uma mesmo. Mas venho aos domingos na primeira missa por causa do canto gregoriano.
- Ah, entendi. Na verdade você apenas dissimula rebeldia.
- Não, meu caro, não sou rebelde. Sou até mesmo bastante conservador em questões de moral. Venho apenas por causa da música. E isso não é uma parte eclesiástica de minha existência, mas apenas um sentimento estético.
- OK, mais uma maneira bonita...
- Não, acredite, eu digo a verdade. A música é alimento para a minha imaginação, para minha atividade criativa.
- Você é um artista?
- Sim, sou um artista independente.
- E qual a sua arte?
- Escrever contos. Sou contista.
- E isso conta?
- Para mim, sim. Muitos artistas famosos eram contistas e foram reconhecidamente célebres por esta arte.
- É verdade.
- Agora se o amigo me der licença está na hora do miserere e preciso terminar esse conto.
- Ah, sim, a vontade.

O reducionista




- Percebi sua guinada para a esquerda.
- Para a esquerda? Mas estou parado, meu caro.
- Não, não me refiro a movimentar o corpo, mas às ideias políticas.
- Ah, sim. E por que você acha isso?
- Você não é mais o mesmo.
- Não sou mais o mesmo? Bem, antes preciso saber alguma coisa.
- Pois não?
- Isso que você pensa sobre mim é bom ou ruim?
- Ruim, ora.
- Ah, entendi. Você é um militante, não?
- Sim, milito em nome da moral e dos bons costumes!
- Muito bem! Mas por que você acha que eu..., para usar as suas palavras, ... dei uma guinada para a esquerda?
- Suas ideias. Você não é mais o mesmo.
- Talvez isso seja bom, não?
- Ser de esquerda?
- Não, não ser mais o mesmo.
- Bem, no seu caso é ruim.
- Por quê?
- Porque você abandonou a moral e os bons costumes. Foi seduzido por uma ideologia imoral.
- Olha, não sou adepto de nenhuma ideologia. Talvez, você, meu caro, seja um desses reducionistas populares.
- Reducionista popular? O que você quer dizer com isso?
- Ora, isso é simples como seu julgamento. Se meus pensamentos começam a desalinhar dos seus, ou melhor, da ideologia que você entende como verdadeira, defensora da moral e dos bons costumes; então estou me desviando para o lado contrário do seu. E nesse caso me desvio para a imoralidade, já que você tem certeza que o seu lado é o lado certo, o único certo. Isso é ser reducionista, ou seja, não admitir outras possibilidades e reduzir tudo a isso ou aquilo; ao certo e errado, etc.
- Entendo. Então?
- Então, o quê?
- Vai continuar do lado errado?

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Eles sabem brandir!




- Você é professor?
- Fui.
- Não é mais? Mas ainda é tão novo.
- Sim, parece, mas parei enquanto ainda havia dignidade em mim.
- É tão feio assim?
- Sim, muito e pode ficar bem pior.
- Nossa, quanto pessimismo! Você dava aula de quê?
- Teologia.
- Teologia? E isso serve para alguma coisa ainda?
- Não muito, mas ajudaria evitar algumas sandices religiosas.
- Teologia cristã?
- Sim, teologia da bíblia.
- Desculpe-me a sinceridade, mas não acha isso um tanto anacrônico?
- Sim, sem dúvida, mas não escolhemos a paixão é ela que nos escolhe.
- Ora, se é apaixonado, então por que parou de dar aulas?
- Nesse ramo por que não existem alunos.
- Como não? As igrejas estão cheias!
- Sim, é verdade, mas o povo de igreja não se interessa por teologia e bíblia.
- Isso me parece um paradoxo, não?
- Sim, mas é a verdade.
- É que eu vejo os crentes brandindo suas bíblias contra tudo e todos!
- Sim, é o máximo que eles podem fazer: brandir! Tentei ensina-los, mas eles preferiam: brandir! Você usou o verbo correto, eles só sabem brandir!
- Entendo. É muita gritaria e ignorância e pouca lucidez e sabedoria, não?
- Por aí. O mais triste é que essa ignorância passeia por dois extremos: desde os analfabetos até os doutores. Você sabia que existem pastores de igrejas pentecostais que não sabem nem mesmo ler e escrever em português? E pensam que podem ensinar outros analfabetos sobre um livro que foi escrito em hebraico e grego.
- Nossa, isso é sério mesmo!
- Mas eles sabem brandir!

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Por toda parte...




- Foi você quem escreveu aquele livro?
- Foi.
- E você pensa daquele jeito mesmo?
- Qual?
- Igual aquele sujeito que dizia...
- Não sei, preciso rever como ele pensava...
- Ora, mas não foi você quem escreveu?
- Já disse que sim.
- Então, por que diz que precisa rever?
- Ora, preciso me reencontrar com esse cidadão que você citou...
- Mas ele é você!
- Não, eu sou eu e ele é ele...
- Mas ele é sua criação!
- Não, eu relatei apenas o que ele pensa...
- Ah, entendi. Qual personagem é você naquele livro?
- Nenhum.
- Nenhum? Seja sincero!
- Estou sendo, meu caro. Sou apenas um escriba. Transcrevo apenas o que ouço.
- Tá. Então onde me encontro com esse sujeito para saber por que ele pensa daquele jeito?
- Ah, ele está por toda parte.

10 Aforismos Poéticos




A arte é a minha maior parte, destarte é a parte que mais me incomoda, pois a moda é a roda que move e dissolve o talento.
A literatura coloca minha alma a altura e transforma minha desventura em fortuna.
A música embala mais meus dedos que as pernas, pois diminui meus medos para imprimir minha fala em letras sem arremedos.
A religião é a mais esperta invenção humana para ter deus e homens em servidão.
A poesia é a arte de mentir esteticamente belo. A mentira é a parte fundamental da poesia, só ela faz dela ser vero.
A leitura sempre fez parte de minha vida. No entanto, a literatura veio após muita lida.
Quando li pela primeira vez dostoièvski, vi que não era digno dele. Quando vi que Raskòlnikòv e Aliòcha eram como eu, o indigno em mim se desfez.
O poder é o pai da política. Sem saber como fazer para seu desejo permanecer a criou ex nihilo.
Leio em voz alta, para que a malta que cerceio sinta a falta e o receio do meu desnudamento.
Há algo sagrado em cada pessoa. E isso em cada um ressoa. É a única parte boa. É o que fica, o que ecoa.

quarta-feira, 5 de julho de 2017

O nascimento da Tragédia




Meu nome é Tragédia. Não, esse não é o meu nome de batismo ou de registro civil, mas o nome que surgiu no peito de minha mãe e de meu pai: uma tragédia. Não, não surgiu mesmo no peito deles, só quis dar um sentido poético a isso. Na verdade o nome surgiu da mente deles, mente apavorada, mente desesperada por perceber o que é ter um filho em meio à pobreza extrema: uma tragédia. “Essa criança é uma tragédia!” Foi isso que eu ouvi em meus sonhos antes de nascer.
Naquele tempo antes de eu nascer realmente me achava uma tragédia. Chegava a me achar um egocêntrico por invadir arbitrariamente um corpo sem pedir licença. Desejava ansiosamente existir fisicamente, então tracei um plano e invadi as entranhas de uma mulher com uma ajudinha de um homem. Não me preocupei em escolher o casal, mas procurei os que estavam à mão. Inicialmente pensei apenas em usá-los e depois seguir a minha vida. Só que a realidade não era bem como eu imaginava, mas antes de eu nascer pensava uma porção de coisas descabidas e a ansiedade me atrapalhava bastante com a lógica da existência.
Então me vi preso a um ventre de mulher e perdi a minha liberdade que tinha antes de eu nascer. Bem, não podia chamar de prisão aquele ventre, pois meus desejos eram atendidos. Não, na verdade não eram atendidos porque a mulher e o homem não tinham dinheiro suficiente para atende-los; mas a minha vontade a incomodava e isso já era prazeroso. Tive que permanecer ali por nove meses, então faria de sua vida um inferno. Esse era meu pensamento, sei que não tinha nada de nobre. Lembro de quando ia dormir naquele ventre vinha-me um sentimento de culpa, mas desde que de lá saí vi que a existência também não tinha nada de nobre e me arrependia de ter tido tal sentimento idiota.
Fui crescendo naquele ventre. Faminto. E a cada vez que ouvia o meu nome: Tragédia! Sentia mais ódio. O ódio que eu sentia não tinha um alvo específico, apenas aquela palavra repetitiva estava me cansando. Tinha um plano de acabar com a existência daquela voz que sempre pronunciava esse nome. Voz feminina e voz masculina. Assim que descobrisse como sair dali colocaria em prática meu plano.
Não sei se meus pensamentos poderiam ser sentidos pela dona do ventre, pois lembro de algumas vezes a minha precária existência naquele lugar ser ameaçada. Não fosse a minha agilidade teria morrido naquela pocilga sem antes de dar uma espiadinha do lado de fora. Não posso reclamar desses atentados, pois meus planos de vingança também visavam o homicídio. Bem, escapei ileso.
O tempo passou e vi que estava maior, mais inteiro. Eu não era mais apenas pensamento, mas ganhara um corpo. Percebi que havia uma saída e poderia provoca-la ao máximo de seu desgaste. E o fiz. Lembro de uma correria. Ouvia vozes ofegantes. Percebi que naquele momento poderia dar cabo de parte de minha vingança. Dificultei a minha saída e matei aquele corpo de mulher que me prendera por nove meses.
Hoje não me chamo mais Tragédia. Meu nome é João Carlos de Mattos. Lembro que quando consegui escapar daquele ventre e ter assassinado aquela déspota, o homem que me ajudara a entrar nele já estava morto também. Até onde eu sei ele tinha uma dívida com traficantes e alguns meses antes de eu nascer ele fora assassinado.
Hoje eu me chamo João Carlos de Mattos, matricida. Naquela época não sabia que aquele ventre era de minha mãe. Bem, não tive tempo de amá-la, mas hoje entendo o sentimento de culpa que me visitava nas noites que passei em seu ventre. Bem, o sentimento de culpa era algo que eu compartilhava com aquela mulher que nem sei seu nome, minha mãe. Era o mesmo sentimento de culpa que a vistava quando ia dormir e se lembrava das palavras duras que dizia quando se referia a mim: Tragédia!
Não sou mais Tragédia. Eu me chamo doutor Mattos. Moro em Sydney na Austrália. Fui adotado por um jovem casal naquela época em que nasci, que matei minha mãe e que era órfão de pai. O jovem casal pertencia a uma família de classe média alta, a família Mattos. Ganhei um bom sobrenome, uma boa história e herdei uma boa fortuna. A fortuna dos Mattos me levou à faculdade de medicina e a Sydney.
Meu nome não é Tragédia. Meu nome é João Carlos. Aprendi amar. Tenho uma família e sou feliz. Hoje me encarrego de trazer à vida esses pensamentos ansiosos que existem antes da gente nascer. Minha esposa é psicóloga e prossegue com o tratamento do sentimento de culpa herdado. Mas, para ser sincero, aqui em Sydney esse problema não é tão comum como no Brazil. E isso nos fez evoluir em nossas especialidades médicas e avançamos rumo a novas descobertas.

A primeira edição

          Assim se deu o diálogo entre dois velhos amigos: - É apenas um livro. - Não, não é apenas um livro, mas a primeira e...