quinta-feira, 29 de junho de 2017

Diálogos Cotidianos 3




sobre o terror
- Mataram mais um terrorista, graças a Deus!
- Fizeram o que o cara queria.
- Pô, Pedro, fala sério... Vai me dizer que você é contra matar terroristas?
- É claro que sou. Você acha que esses loucos religiosos fanáticos têm medo da morte? A morte é prêmio para eles. Todas as vezes que a polícia mata um terrorista está motivando cada vez mais o terror.
- O quê? Cê tá louco, Pedro!
- Você que é um ingênuo, Paulo. Olha só, lembra dos mártires cristãos? Teve até um padre antigo que dizia que o sangue dos mártires era o fermento da igreja. Quanto mais o império matava cristãos, mais aumentava o número de fiéis. Sabe por quê? Porque a morte é rápida, sem dor, entende? Depois que começaram a torturar a valentia dos mártires chegou a quase zero.
- Tá, mas acho melhor que matem logo.
- OK, mas isso não amedronta aqueles que estão na fila esperando a sua vez. Tem que torturar o cara em praça pública. Obrigá-lo a cometer heresias contra a sua fé lunática.
- Bem, não acho que isso seja eficiente, Pedro. Vai gerar mais ódio.
- Não, meu amigo, o ódio já alcançou seus limites.

Diálogos Cotidianos 2




O juiz, o caos e os jovens

- E aquele juiz? - Paulo inquiria Pedro tentando mostrar-lhe que seu sentimento radical e pensamento pessimista esbarravam diante de algumas figuras que traziam certa esperança ao país.
- O juiz? Ora, ele é o maior atraso dessa nação!
- Atraso, Pedro? Não seja incoerente! O sujeito caça com todas as suas forças os maiores corruptos dessa república!
- Para ser sincero, Paulo, o juiz atrapalhou tudo. Ele tirou a minha última esperança de refazermos esse país.
- Mas é justamente o que ele está fazendo, homem! Ele é a nossa única esperança!
- Discordo, meu caro.
- Discorda? Então me explica... - Paulo já estava impaciente com a cegueira de Pedro.
- Escuta, amigo, a saída para esse país era o caos absoluto. Sem o caos absoluto não conseguiríamos recomeçar com dignidade. A minha esperança era com o aumento da corrupção e isso estava acontecendo em passadas largas. A corrupção invadindo todos os segmentos da sociedade. Enquanto o juiz e outros apenas jogavam isso ao vento estava legal, mas quando começou a tentar punir os corruptores, ele se mostrou um mau leitor da história.
- Mau leitor? Ora, ele a compreendeu perfeitamente e faz história...
- Faz história pra gringo ver, amigo. O papel do juiz e sua trupe era apenas da divulgação absoluta. Mas eles quiseram ir mais longe. É compreensível essa ansiedade. Mas depois de um tempo ele deveria ter percebido que deveria deixar a coisa correr. Veja agora, ele prende e outro juiz solta. Não, Paulo, não é assim que se acaba com a corrupção em nosso país. É ela mesma que tem que se autodestruir. Os raros homens e mulheres bons devem apenas cercá-la, divulgá-la e acompanhar seus passos. Quando ela atingir a exaustão absoluta, aí sim, lança-se as armadilhas!
Mateus e João aproximaram-se dos dois falantes com bastante curiosidade. Mateus foi o primeiro a falar e em seguida João.
- O senhor realmente acha que esperar pelo caos absoluto seria a melhor estratégia? - Perguntou Mateus deixando à mostra sua ingenuidade nesses assuntos.
- Sim, garoto. Quando o mal está em curso numa velocidade avassaladora é inútil se colocar à frente; certamente você será esmagado.
Mateus se calou e ficou a refletir. João então emendou o amigo.
- Bem, isso pode até fazer sentido em se tratando de poesia, mas a realidade exige tomadas mais severas. - Disse com malícia o jovem acadêmico.
- Sem dúvida, jovem. Não há mais severidade do que a indiferença absoluta!


Diálogos Cotidianos 1





O louco, o poste e o egocêntrico

- Esse país parece com aquela história do louco, conhece? O sujeito foi enlouquecendo aos poucos, pois parece que é assim mesmo que a loucura acontece, não? Bem, o sujeito foi enlouquecendo, mas a família ia contornando suas loucuras. Até que um dia, o louco surtou e começou a quebrar as coisas dentro de casa e falar uma língua que ninguém conhecia. Aí, a família precisava tomar uma atitude mais severa, não é mesmo? Decidiram amarrar o lunático a um poste que ficava num quartinho onde se guardava materiais diversos. E o louco ficara ali, isolado e preso. Após alguns anos, muitos anos na loucura, solidão e prisão; sua mulher resolveu o libertar. Depois de lhe tirar as correias e abrir a porta do quartinho, o sujeito não moveu um centímetro do poste. Ele se habituara tanto ao poste que não conseguia se libertar. Entende? Essa história fala de nós.
- Entendi, Pedro. Mas os tempos estão mudando, meu velho.
- Mudando? Mudando onde?
- Ora, você sabe. Você é muito pessimista! Com essa evolução tecnológica da informação estamos mais bem informados sobre os acontecimentos gerais.
- Sim. E o que mudou? Continuamos os mesmos loucos agarrados aos nossos postes. Todas essas informações que enchem nossas timelines são filtradas. E o filtro é somente aquilo que se agarra como musgo aos nossos postes.
- Já vem você falando por parábolas!
- Que parábolas, Paulo. Falo claro como esse céu azul. O sujeito recebe uma enxurrada de informações e só digere aquelas que fortalecem seu poste, entende? As informações que poderiam livrá-lo das amarras que o prendem ao seu poste ele ignora. Não adianta colocar diante de um faminto um belo filé suculento se ele não tiver dentes.
- Estou entendendo. Então não temos saída.
- Ora, agora quem me parece o pessimista é você.
- Bem, não sou tão pessimista quanto você, mas esse quadro que você demonstrou é bem visível e entristecedor.
Em todo bar brasileiro nenhuma conversa fica restrita aos conhecidos, sempre alguma palavra ou ideia escapa alcançando ouvidos alheios. E as palavras e ideias de Pedro e Paulo alcançaram os ouvidos de Lucas.
- Com licença, amigos. Estava ouvindo a conversa de vocês e gostaria de fazer uma pergunta.
- Pois não. - Respondeu Pedro voltando-se para Lucas com um semblante de indiferença que fazia questão de deixá-lo explícito.
- Olha, não quero ser ofensivo, mas sempre escuto esse tipo de crítica. Gostaria de saber qual é a sua proposta para livrarmos os homens dos postes.
- Proposta? - Pedro já respondia com sarcasmo. - Proposta, meu amigo? Não tenho proposta nenhuma, sou um indivíduo e só tenho proposta para mim mesmo. Se o sujeito deseja manter-se agarrado a um poste isso é problema dele!
- Ora, mas assim sua crítica é vã! - Insistiu Lucas.
- Sim, vã como a vida. Não faço isso pelos outros, meu caro, faço isso por mim.
- Olha, amigo, não interprete ao pé da letra o meu amigo. Ele é bem esquisitão quando tenta divulgar suas opiniões. - Paulo tentou amenizar, pois já notava o semblante assustado de Lucas.
- Não, tudo bem. Estou lhe entendo. Você é um egocêntrico e não pense que pretendo ofendê-lo. - Concluiu Lucas.
- Sim, isso mesmo. Olha, depois dos cinquenta quem ainda se ofende com palavras merece o poste que o prende.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Pliapa




O nome dela era Teresa. Ela era chata. Bem, era assim que pensava Carlos. Carlos começou a chamar de Pliapa. E quando perguntavam a ele. “Por que, Pliapa?” Ele respondia. “Porque Pliapa é uma coisa chata”. Amauri dizia não ter encontrado tal palavra no dicionário e acusava Carlos de criar um neologismo. Priscila achava que alguém que tinha a capacidade de criar palavras dando-lhe significados era intelectual. Carlos era um intelectual para Priscila. E isso o ajudou bastante para tirar proveito do belo corpo da morena.
Teresa não compartilhava dos sentimentos de Priscila e achava Carlos muito pedante. No entanto, todos sabiam que nesse assunto a bronca era contra a bela Priscila. Amauri costumava dizer. “Que culpa tem a menina de ser bonita?”. Coisa que Teresa repudiava em Amauri, pois percebia que havia sarcasmo em suas palavras.
O apelido de Teresa seguia sem o seu conhecimento e quando ela entrava na copa, alguém cochichava no ouvido do outro. “Chegou a Pliapa.” Ela ouvia o cochicho e os risinhos, mas gostava de dissimular desinteresse, pois achava assim demonstrar espírito elevado.
Carlos seguia com seu jeito extrovertido e cool. Conquistava a todos com a sua sagacidade e esperteza. Tinha a facilidade de dominar com certa rapidez vários assuntos do cotidiano e sabia como manuseá-los de maneira eficaz, usando cada assunto específico com a pessoa específica. Num ambiente a ordem do dia era o futebol e Carlos sabia os resultados. Entre as meninas da telefonia eram as fofocas de celebridades. Nos altos escalões executivos eram os puteiros. Carlos conseguia estar bem em qualquer ambiente e consequentemente o apelido de Teresa seguia o mesmo destino, com a mesma rapidez.
O apelido de Teresa foi subindo os andares, entrando nas salas, nas reuniões, nas festas de fim de ano, nos churrascos. A única pessoa que desconhecia o apelido era a própria Teresa. Como um juramento de uma seita, parecia que todos estavam combinados em esconder de Teresa sua alcunha.
Mas como nada é para sempre, certo dia numa confraternização entre as telefonistas em que Teresa participou, Betânia deixou escapar o maior segredo da empresa. E pela primeira vez, ela ouviu ser chamada de Pliapa. Ela perguntou a Betânia. “Por que estão me chamando de Pliapa? O que isso significa?” A telefonista sob os olhares de reprovação das demais telefonistas, respondeu. “Ah, Teresa, é apenas uma brincadeira do Carlos.” Agora Teresa conhecia o apelido e o autor. Teresa inquiriu novamente Betânia. “E você sabe o que isso significa?” E Betânia respondeu. “O Amauri disse que é uma palavra inventada, um tal de neo alguma coisa, eu acho.” Teresa parece não ter ouvido a resposta da telefonista e numa olhada rápida via a face de cada menina e todas desconfortadas com a situação. Emendou. “Vocês sabem o que pliapa significa?” Augusta, a telefonista mais velha, tomou a frente e disse. “Teresa, pliapa é coisa chata.”
Teresa se despediu das meninas. Desceu até seu andar. Andando de cabeça baixa sem olha para os lados foi até a sua sala. Pegou o telefone fez uma ligação. Pegou em seguida sua bolsa e saiu de sua sala do mesmo jeito que entrou. No hall de elevadores chamou o elevador. Entrou e desceu.
Todos olhavam para Carlos com olhar de reprovação. Aquele olhar dissimulado que busca redenção num bode expiatório. Carlos disse. “Isso passa, gente, Pliapa é chata, mas é forte.” Priscila o olhou indignada e disse que ele deveria pedir desculpas a Teresa. Ele emendou. “OK, gata, amanhã eu falo com ela e tudo fica resolvido.”
Final de expediente. Carlos seguiu sua via crucis até sua casa. Abriu a porta, tirou o paletó jogando-o no sofá, tirou os sapatos deixando-os na entrada. Sentou-se em sua poltrona, não ligou a TV, apenas descansou a cabeça. Silêncio, nada se ouvia, apenas a goteira da insistente torneira da cozinha: pli-a-pa, pli-a-pa, pli-a-pa, pli-a-pa...

sexta-feira, 23 de junho de 2017

O homem mais sortudo do mundo




Bertrand era o sujeito mais sortudo do mundo. Era isso o que seus amigos diziam sobre ele. Bertrand era extremamente atraente. Bertrand era a melhor definição para belo. E quem disse que a beleza não ajuda? Bertrand não era o mais inteligente, não era burro também, mas a sua inteligência não seria a explicação para alcançar a diretoria da firma. É claro que dr Hermann percebeu que poderia tirar proveito de sua bela aparência. E tirava mesmo. A firma conseguiu criar sociedades lucrativas todas as vezes que Bertrand estava na liderança das negociações. E para aumentar mais sua atração, Bertrand era o cara cool. Bertrand se dava bem com todos e todas. Os homens o admiravam. As mulheres ficavam encantadas. Com tudo isso, Bertrand tinha trinta anos, uma carreira brilhante, um belo apartamento na rua Russell, um carro esporte, heterossexual e solteiro; o que deixava os homens com inveja e as mulheres com esperança.

Quando a firma comemorava mais uma sociedade, dr Hermann resolveu dar uma festinha particular no vigésimo andar do edifício Martin. O vigésimo andar era famoso pelas festas da diretoria e por envolver algumas pessoas famosas da mídia em geral. Bertrand, como sempre, era a atração principal.

Às 23:00h, dr Hermann entrava pelo grande corredor tendo ao seu lado uma bela mulher. Uma mulher que ninguém conhecia, mas que disputava a atenção dos presentes por sua beleza, beleza que fez com que Bertrand virasse e ficasse mudo por alguns instantes. E esse movimento foi percebido por quem estava próximo a ele. Dr Hermann se aproximou de Bertrand e apresentou a beldade ao seu diretor. Ela se chamava Catarina e era extremamente bela. Bertrand a observava com grande reverência, como um encontro entre deuses. Catarina fora uma das estagiárias de dr Hermann que acabou seguindo carreira em outra firma famosa. De passagem pela cidade resolveu lhe fazer uma visita e a perspicácia de dr. Hermann a convenceu de ir à festa, mesmo a beldade dizendo que vinha para resolver assuntos pessoais que não podiam ser adiados.

- Então, você é o famoso Bertrand?

- Famoso? Hermann já te contou uma porção de mentiras, né?

- Bem, quanto à beleza era verdade, não sei sobre as outras. - Bertrand ria com a espirituosidade da bela Catarina.

- Obrigado, você é muito bela! Está aqui a trabalho?

- Não, mas tenho assuntos inadiáveis.

- Nossa, que pena! Pensei que seria minha nova colega.

- Não, trabalho no Arquipélago. Já fui estagiária de Hermann, mas minha especialidade me levou para o outro lado do oceano.

- Sei. Estamos avançando. Quem sabe um dia não alcançamos o Arquipélago?

- Bem, não sei os interesses de Hermann e dos Harveys. Eu cheguei ao meu ponto.

- Sério? Não tem mais ambições?

- Ah, Bertrand, chega uma hora que basta, não?
- Bem, ainda quero mais, sabe? Minha vida é movida por esse querer mais.

- Sei. Já fui assim. Não pensa em parar?

- Parar? Não! Nada pode me parar.

Catarina conheceu os outros funcionários e não conseguia tirar os olhos de Bertrand. Realmente, ele era muito bonito, ainda mais na penumbra, efeito provocado por uma fina cortina em contraste com uma luz amarela fosca. Bertrando conseguiu desviar-se de alguns amigos e amigas, e chegando próximo dos ouvidos de Catarina e disse-lhe algo que a fez sorrir. Catarina não tinha um sorriso verdadeiro, mas parecia que sempre estava dissimulando. E isso a deixava mais linda. Bertrand após cochichar no ouvido de Catarina, dirigiu-se ao hall dos elevadores. Catarina, furtivamente, conseguiu alcançar Bertrand. Os dois entraram no elevador que descia até a entrada do prédio. Bertrand cumprimentou Mário se despedindo e desejando bom serviço.

Foram até o estacionamento, entraram no carro esporte de Bertrand e se beijaram ardentemente. Catarina interrompeu o carinho e sugeriu ir até a sua casa. Bertrand concordou e voou com seu porsche até a rua Hemengarda. Catarina morava num loft elegante. Não tinha porteiro e cada morador tinha sua entrada independente. A sala era aconchegante. Cortinas finas, luz baixa e uma bela árvore que roçava a janela pelo lado de fora. Os dois sentaram no sofá enquanto ouvia Richter. Beijavam-se, Tocavam-se. Bertrand sentia os seios volumosos da bela e ela entrelaçava sua mão em seus cabelos. Catarina percebendo a adrenalina e o tesão subindo, conteve Bertrand e esse assustado a olhava.

- Quer beber alguma coisa?

- Nossa, você me deu um susto. Pensei que estava abusando…

- Não, querido. Vamos beber alguma coisa.

- OK, o que você sugere?

- Vodka.

- Opa, vodka!

- Vou preparar.

Catarina retornou com dois copos de vodka. Colocou sobre uma mesinha no centro da sala e entrou no quarto dizendo que já voltaria. Catarina voltou numa lingerie super sensual e chamou Bertrand para o quarto.

- Traga as bebidas, querido.

- Sim, minha deusa, estou indo.

Sentados na cama bebiam a vodka que entrava ardendo os corpos. Catarina beijava a boca de Bertrand derramando nela a vodka e ele fazia o mesmo com ela.

- Bertrand, meu querido, temos quinze minutos.

- Como assim?
- Temos quinze minutos até o veneno fazer efeito.

- Veneno?

A voz de Bertrand já saía com dificuldade. Catarina percebeu que a bebida já lhe fazia efeito antes do veneno. Bertrand tentava entender, mas o álcool entorpecia sua razão com muita rapidez.

- Bertrand, querido, isso era inadiável. Voltei para casa para encerrar minha existência. Cansei, querido. Eu sempre soube que a morte era um evento solitário e isso me deixava bastante deprimida. Precisava de uma companhia. E quando Hermann me falou sobre você quis ver com meus próprios olhos. Quando te vi, compreendi que você seria a perfeita companhia. Agora podemos morrer juntos, um acompanhando o outro.

Catarina empurrou com delicadeza o frágil corpo de Bertrand fazendo-o deitar. Catarina deitou sobre seus braços e ouvia levemente a respiração de Bertrand, respiração que a cada segundo ia diminuindo até parar totalmente. E num último suspiro, Catarina disse: adeus...

Fake




- Não, você não está sabendo ser livre.

- Não? Por quê, não?

- Joga essa bandeira no chão. Queime essa bandeira!

- Jamais!

- Está vendo? É justamente essa veneração que te aprisiona.

Cheguei em casa e fiz algumas anotações sobre a conversa que tive com um jovem que se dizia revolucionário, mas que carregava bandeiras antigas e cantava músicas ultrapassadas. Preparei a aula do dia seguinte e pus uma observação para que me lembrasse de falar sobre essa conversa antes de começar a aula. Jantei e fui dormir.

- Bom dia.

- Bom dia!

- Antes de começar a aula gostaria de compartilhar com vocês sobre um ocorrido entre mim e um jovem revolucionário, na rua do canal, no downtown.

- O senhor e suas histórias…

- Sim, mas essa é bem ilustrativa…

Depois que contei o ocorrido e depois de algumas gargalhadas dei sequência à aula. Estávamos falando sobre o existencialismo do pós-guerra, mas comecei introduzindo Kierkegaard. Almocei no refeitório do college. Conversei com Arthur e tirei algumas dúvidas sobre as eleições e a party. Participei de uma reunião com o director, tinha algumas propostas de trip para mim. Aceitei uma para Netherlands e recusei a de Cuba. Meu ano sabático se aproximava e precisava de elementos nórdicos para meu book. Em casa dei comida para o dog. Preparei uma comida congelada e cochilei na poltrona. Entrei no google maps e viajei virtualmente nas ruas de Netherlands. Fui dormir de madrugada, mas acordei num salto ao ouvir gritos do lado de fora. Fui até a janela e olhei lá fora. Uma turba com bandeiras e alguma coisa que queimava. De relance percebi uma sombra escorada na parede de minha casa e próxima à janela. Era o jovem revolucionário que pichava minha parede. Um deles que carregava alguma coisa com fogo gritou e o pichador deu um salto, pulou o muro e saíram correndo desaparecendo na escuridão das ruas de iluminação marrom. Fui até lá fora e vi que o jovem que lutava por liberdade pichara: ABAIXO OS FASCISTAS!

- Ah, sei! E é você que vai me ensinar ser livre?

- Não, meu caro, eu não, mas essa viagem você terá que fazer sozinho, entende? Sem bandeiras, sem instituições e, principalmente, sem violência contra a liberdade do outro.

- Fascista! Fascista!

Resolvi me retirar, pois até mesmo as definições mais básicas se tornaram fakes.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

O inferno dos Números ou 70 x 7




Número 389 conseguira ser atendido para falar com o Número 4. Há tempos vinha tentando ser atendido para poder se explicar perante o chefe sobre o porquê de seu mau desempenho. Quando acordou naquela sexta-feira nublada, normalmente cinza e com cheiro de fumaça, o telefone tocara e ouvira a voz rouca e tenebrosa da Número 297 dizendo que sua entrevista fora aceita.

- Ele vai recebê-lo na segunda-feira próxima.

- Quem?

- O Número 4.

- O Número 4? Sério?

Ele sabia que até o Número 10 estava bom, jamais imaginaria que seria atendido pelo Número 4. O maioral de todos, abaixo apenas Deles. Ficara satisfeito, mas daí vinha um certo incômodo. Por que o Número 4? Avaliou que isso não seria tão bom, ou seja, julgar seu mau desempenho, um assunto para o maioral. Passou o fim de semana deprimido e preocupado. Já se arrependia de ter insistido com a entrevista. Pensou em ligar para o Número 197, seu amigo de faculdade. Número 197 sempre fora bom em redação. Quem sabe ele escreveria uma carta pedindo desculpas por incomodar pessoa tão ilustre. Não, não poderia fazer isso. Era óbvio que seria interpretado como um covarde e perderia imediatamente sua credencial e passaporte. E ele sabe que foi uma luta para consegui-los. Teria que ir até o fim.

- Número 389, por favor, pode entrar.

Anunciou a voz rouca e terrível da Número 297. Da poltrona que estava sentado até a sala do Número 4 levou uma eternidade. Parecia uma via crucis sem perdão. Passou pela porta que media quatro metros de altura simbolizando a hierarquia daquela autoridade. A sala era enorme e tinha como objetivo revelar a grandeza de seu dono, pois sentava-se numa poltrona como trono que se projetava ao alto dando a sensação de pequenez de quem ousava perturbar os pensamentos do líder maioral. A cadeira colocada à frente e absurdamente abaixo do Número 4 cumpria sua tarefa de evidenciar a inferioridade da pessoa. Número 389 amaldiçoava a si mesmo em pensamento. No entanto, com grande surpresa, a voz do Número 4 soava doce e pacífica.

- Olá, jovem, seja bem vindo.

Essa recepção amigável deu ânimo novo ao Número 389.

- Obrigado, Senhor.

- O que te aflige, filho?

- Meu desempenho, mestre. Quer dizer, meu mau desempenho…

- Sim, estou conferindo. Realmente as coisas não foram boas.

- Mestre, se me permite gostaria de explicar o que está acontecendo.

- Sim, prossiga.
- Tenho feito aquilo que aprendi na academia, Senhor. Mas o Teatro vive momentos de indiferença, entende, Senhor?

- Hum…

- Nada mais escandaliza os personagens. Por mais cruel que seja nossa ação, nada é mais novidade. Todas as crueldades já chegaram ao seu ápice. Já fomos ao mais alto nível da radicalidade da violência, mas a indiferença que reina entre os personagens desconstrói toda e qualquer ação diabólica, Senhor. Eles estão cada vez piores.

- Sim, tenho notado isso. Mas estou rodeado de puxa-sacos que com medo de me irritar me preparam relatórios falsos. E não posso estar em todos os lugares ao mesmo tempo, não é, filho?

- Sim, meu Senhor.

- Admiro e sou grato pela sua sinceridade. O que você sugere? Ou você veio aqui apenas para me falar do mais do mesmo?

- Não, Senhor, jamais faria isso.

- Então, diga-me, o que você me traz?

- Com todo respeito ao Senhor e aos demais superiores. Temos que mudar nossa estratégia. Certa vez experimentei algo novo com um personagem que já tinha atingido um belo número de crueldades. Comecei a influenciá-lo na técnica da dissimulação. Ele começou a diminuir suas ações cruéis e dissimulava caridade. Depois que os outros personagens pegavam confiança nele, ele cometia a crueldade mais terrível e ninguém suspeitava dele.

- Bravo!

Número 389 se assustou com a alegria de seu mestre e continuou.

- Então, Senhor, deveríamos treinar nosso pessoal a desenvolver a dissimulação entre os personagens. A dissimulação casa bem com a indiferença.

Número 389 se tornou em pouco mais de alguns anos o Número 33. Era responsável por um grupo grande de Números. Fora condecorado várias vezes pelo maioral e seus superiores. Por onde passava, Número 33 espalhava a técnica da dissimulação que aliada à indiferença aumentava o território da crueldade. Ninguém era poupado, desde os mais jovens personagens até os mais velhos. Número 4 se deliciava em sua sala com os relatórios que recebia após a efetivação da técnica de 33. Contudo, Número 33 guardava um segredo de seu mestre com medo de perder sua posição e ser severamente castigado. Desde que ele colocara sua técnica em prática que os Três primeiros aumentaram o nível do perdão.

A chuva fina de Isac




Isac morreu. O velório será na capela de número 08 do cemitério dos judeus. Horário: 09:00h. O rabino estará presente.

Carlos era amigo de Isac e amava Sara, sua mulher. Pela amizade manteve-se afastado sexualmente de Sara. Carlos casou com Esther e não a amava como amava Sara. Sara sempre foi seu amor e ninguém sabia. Bem, isso era o que ele achava, pois os amigos mais próximos desconfiavam.

Certa vez Isaura comentando os olhares de Carlos sobre Sara, disse: “Parece estar delirando!”

Isac morreu ontem. Ataque fulminante no coração. Carlos já sofria há bastante tempo do coração, mas um sofrimento diferente.

Carlos ligou para Moisés:

- Isac morreu.

- Eu sei. Estou muito triste.

- Você vai no velório? O rabino vai tá lá.

- Vou sim.

- A gente se vê lá.

Esther morrera há cinco anos. Carlos não casou de novo. Preferiu a solidão. Não tiveram filhos, porque Esther era estéril. Carlos costumava dizer para si mesmo: “Maldita religião que sempre espera por anjos!”

Os melhores amigos de Isac já estavam na capela de número 08. Carlos chegou e cumprimentou a todos. Chovia uma chuva fina fazendo um pano de fundo bem apropriado, como um tema fúnebre. Jacó tocava sua harpa e Débora sussurrava uma cantiga preferida do morto. Sara estava sentada próxima ao caixão tendo ao lado seu filho Levi e sua filha Rute. Quando Débora acabou a cantiga e só ficando a harpa de Jacó, o rabino começou a falar palavras decoradas da Torá.

Isac seria depositado numa colina com algumas figueiras. A colina já estava habitada por alguns mortos de sua família. Carlos mantinha-se junto à Sara e seus filhos. O rabino disse mais algumas palavras. Quando a chuva aumentou todos foram sensatos em encerrar a cerimônia.

Alguns amigos se despediram e os mais íntimos seguiram com Sara e seus filhos à casa do falecido. Carlos manteve-se afastado na varanda e observava todos. Seus olhos pararam em Sara, vestido negro, olhar triste. Carlos se espantava como ainda a desejava, como ainda a amava.

O rabino despediu-se da viúva. Em seguida cada um aproximava-se de Sara respeitosamente e se despedia, mas sempre deixando uma palavra de consolo.

Após uma semana, Levi e Rute também se despediram da mãe, pois as obrigações dos vivos eram emergenciais. Levi prometera que voltaria no fim de semana e Rute dissera que acertaria um período de férias com sua chefe e ficaria com ela.

Sara estava sozinha. Recebeu a visita de Carlos que trazia-lhe um belo buquê de flores. E sem deixá-la falar alguma coisa, disse:

- Sara, você sabe que esse tempo todo te amei. Um amor silencioso e doloroso. Casei-me com quem não amava. Ah, como doía saber que você amava Isac! Ah, como doía saber que ele desfrutava de seu corpo! Desculpe-me ser tão sincero nesse momento de dor, mas carrego essa dor comigo há quase cinquenta anos! Sara, deixa agora eu cuidar de você. Deixa agora eu te amar. Você não acha que eu mereço seu amor, agora que Isac partiu? Esse tempo todo respeitei meu amigo e jamais fui imoral. Guardei comigo meus desejos. Ah, Sara, você não imagina o que é guardar isso! Sara, casa comigo!

Sara o olhava assustada e podia ver a dor na face e na voz do amigo. Sara disse:

- Ah, Carlos, como sinto sua dor e sei que é sincera! Mas, meu querido amigo, meu coração pertence apenas a um homem, Isac. Agradeço a Deus pela sua amizade, mas não poderia me entregar a nenhum outro homem, nem mesmo a você, meu amigo. Espero que você me entenda…

Carlos envergonhou-se. Pediu desculpas e saiu.

Depois de algumas horas, Carlos voltara à casa de Sara. Tocou a campainha. Sara atendeu e antes mesmo que saudasse novamente o amigo, Carlos sacou sua pistola e deu um tiro no peito de Sara. Sara caiu ensanguentada na entrada e Carlos chorando caiu sobre seu corpo. Carlos gritava seu nome e dizia que a amava. Carlos enfiou a pistola em sua boca e deu mais um tiro. Seu corpo tombou sobre o corpo morto de sua eterna amada. Novamente, o céu se fechou e a mesma chuva fina de Isac caía.

sábado, 10 de junho de 2017

Nova Iguaçu, pulp! - CINCO




Patrícia era uma das poucas frequentadoras do brechó da dona Rosa. Patrícia era uma daquelas jovens que gastava seu dinheiro todo com livros e quando lembrava que deveria cobrir suas vergonhas era tarde demais. Daí recorria ao templo das roupas, como era conhecido o brechó de dona Rosa.

Mário gostava de conversar com a moça, pois podia retirar-lhe algumas ideias detetivescas das várias literaturas que Patrícia lia. E quando Mário voltou da confusão no centro de Nova Iguaçu e do quebra-quebra com os traficantes de aves, resolveu descansar em sua poltrona. Enquanto descansava pode ver a silhueta de Patrícia passando em frente a sua porta e subindo para o brechó de dona Rosa.

Deu um salto da poltrona e subiu as escadas atrás da jovem leitora. Quando chegou à porta do brechó viu Patrícia futucando uma arara de roupas do século passado. Rosa o viu e o cumprimentou. Aproximou-se de Patrícia e perguntou se poderiam trocar umas ideias. Ela confirmou com um sorriso e uma piscada, coisa que ela sempre fazia para o detetive.

Do outro lado da cidade, numa bela mansão da Barra da Tijuca, Aurélio tomava café enquanto lia o jornal. Aurélio era o marido de Lady K e mantinha o matrimônio com a bela dama como uma forma de vingança.

- Kátia, temos um compromisso hoje muito importante. - Disse o velho sem tirar os olhos da seção de economia do jornal.

- Não vou. - Respondeu a bela de forma seca. Ela sabia que sua negação era irrelevante, mas fazia questão de deixar bem claro sua vontade. Era como a única forma dela combater a opressão do velho milionário.

- Quero que você vá com aquele vestido vermelho. - A exigência de Aurélio revelava o desprezo dele sobre a sua vontade.

- O vermelho? Por quê, o vermelho? Para aqueles velhos ficarem babando? Você gosta disso, não? Sente prazer, não é? Mesmo sabendo que todo mundo sabe que não existe amor entre nós, mas você gosta de ostentar sua escrava, não? - Kátia agora tinha uma postura irônica e corajosa.

- Sim, isso mesmo. Gosto de mostrar a todos que você é minha escrava, meu brinquedinho. E isso não é culpa minha, meu amoreco. Isso é culpa de sua ambição. Já lhe disse que pode ser livre, mas sem minha grana. Você mesmo sabe que é melhor ser escrava milionária que livre pobretona. - Dizia isso com prazer e dava uma gargalhada no final.

- Não quero ir. - Agora a sua voz era de súplica. Esse tipo de conversa acontecia sempre e seguia do mesmo jeito.

- Eu sei, mas preciso de você lá. Alguns japoneses importantes estarão presentes e preciso que eles venham para o meu lado. - Aurélio precisava da aliança de uma grande empresa japonesa para manter-se no controle de sua empresa. A presença de Kátia era sempre positiva. Poucos homens resistiam ao seu encanto e no desejo de não perder contato com a bela, homens importantes eram influenciados a manter seus negócios com Aurélio.

- Que horas? - Enfim, Kátia capitulava.

- Às 10 horas. Vamos jantar na casa do Diniz. - Respondia Aurélio tirando os olhos do jornal e lançando um sorriso de vitória.

Em Nova Iguaçu, Mário conseguira levar a jovem Patrícia até sua sala. Ele sentou-se em sua poltrona oferecendo o sofá para a jovem.

- Quer beber alguma coisa? Tenho cerveja. - Oferecia o detetive.

- Não, Mário. O que você quer de mim? Preciso ver umas roupas com a Rosa, tô sem grana. - Respondia com aquela irritação dos jovens.

- Olha só, me ajuda numas coisinhas e você poderá comprar roupas de verdade e não esse lixo que a Rosa vende. - Mário ensaiava um tom enigmático.

- Ah, Mário, você sabe que não ligo pra essas coisas de griffe. Gosto dos “lixos” que a Rosa vende. Outra coisa, se ela souber que você acha isso das roupas dela, ela te mata, velho abusado! - Patrícia sabia de como Mário funcionava, mas se a ajudinha pudesse lhe render alguma grana, bem que ela poderia utilizar seus dons literários para ajudar o inculto detetive.

- Ah, foda-se a Rosa. Olha só Patrícia, tô com uma dona cheia da grana. Tô com um caso grande, grana forte, garota. Porra, tinha arrumado uma secretária, mas a louca sumiu. Tô precisando de uma assessoria, entende? - Mário falava sem parar para não deixar a jovem pensar.

- Que caso grande é esse? É coisa perigosa? - Inquiria preocupada Patrícia.

- Não. Coisa grande, mas tranquila. E você só será minha assessora, entende? Coisa chique, menina. - Mário também sabia como Patrícia funcionava. Ele sabia que ela era atraída pelos enigmas, suspenses, investigações. Ele sabia que ela adorava as histórias de Sherlock Holmes.

- Tá, OK. Vou te ajudar com isso. Olha, pode me arrumar um trocado? - Patrícia arriscou.

- Beleza. Toma aqui cem paus, OK? E isso é só o começo, garota. Vá curtir o fim de semana e na segunda-feira esteja aqui às oito, tá bom? - Mário sabia que a tinha fisgado.

- Tá bom. Agora deixa eu ir lá na Rosa. Até segunda, Mário. - A menina pulou do sofá e sumiu escada acima.

Durante o jantar na casa do Diniz, Kátia conversava com um grupo de japoneses sorridentes. Aurélio conversava com Diniz explicando suas manobras de como trazer a gigante japonesa para o lado deles.

- Eu conheço sua estratégia, Aurélio. Ela se chama: Kátia. - Diniz gargalhava.

- Sim. Tenho que aproveitar ao máximo meu investimento, não? Kátia pensou que conseguiria enrolar um velho como eu. - Dizia Aurélio com ar triunfante.

- Aurélio, conselho de amigo. Tome cuidado com essa moça. Uma mulher é sempre misteriosa. Você não tem medo dela estar armando alguma para você? - Aconselhou Diniz.

- Que nada, Diniz. Kátia é uma matutona, nasceu para ser usada. - Zombava o velho enquanto bebia seu Johnnie Walker.

- OK, você sabe o que faz. - Encerrou Diniz.

A bela Lady K conseguira se ver livre dos japoneses que agora conversavam alegremente com Aurélio e Diniz. Lady K driblou o grupinho das senhoras milionárias e se camuflou entre as vastas plantas do terraço da mansão. Olhava o céu negro e estrelado da caótica cidade maravilhosa. Sentiu saudades de casa. Pensou em Mário e sorriu. “O que aquele velho gordo safado deve estar fazendo?” Pensava consigo mesma a bela mulher.

Mário resolveu dormir em sua sala. Assistia a um filme antigo quando bateram em sua porta. Levantou-se com dificuldade e na escuridão não conseguiu identificar se era mulher ou homem. Abriu a porta.

- Porra, Soraya, onde você se meteu?  

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Quatro historinhas de estação




Verão

Os termômetros atingiam os 40 graus centígrados. Vitória esperava o ônibus e lutava pela pequena sombra disputadíssima pelas pessoas. Tinha ainda que enfrentar as filas do banco e passar no escritório dos Andrada & Ribeiro. Pegou o celular e ligou para dona Glória, a baba de Samuel, seu filho. Disse-lhe que se atrasaria e pediu se ela poderia ficar até mais tarde, pagaria as horas excedidas. Ouviu um “sim” seco e o som infinito que o telefone fez após ser desligado. Enfim, o ônibus chegou e já estava lotado. Começou um empurra-empurra para subir no coletivo. Um homem suado e gordo avançava sobre ela em sua retaguarda, enquanto que uma senhora cheia de pacotes andava com dificuldades à sua frente.

Vitória saiu da fila. Foi até uma praça onde havia uma carrocinha de picolé. Comprou um picolé, sentou-se num banco jogando seu fardo ao lado. Chupava o picolé lentamente e olhava, lá fora, a estação que queimava as pessoas.


Outono

- Para mim, é a melhor estação.

- Por quê?

- Ah, o céu fica num azul infinito, eterno. A temperatura mais amena. Minhas dores diminuem…

- Ah, é?

- Sim, tenho dores que aparecem em estações extremas.

- Extremas?

- Sim. As estações que são muito elas mesmas, entende? Prefiro as estações mais maleáveis. Estações propícias ao diálogo.


Inverno

Não, não vou sair de férias.”
Tenho um montão de coisas sérias”

Despediu-se de Joana, entrou no carro e seguiu para o Centro da cidade.

Alô, chefe, já me dirijo ao encontro.”
Não se preocupe, já está tudo pronto.”

Atrasou-se com a multidão de semáforos. “Também, querer ir ao Centro de carro!”. Procurou o número, pois já estava na rua. O número era uma cafeteria de estilo francesa. Viu os dois senhores que o aguardava.

Olá, sou o Marcos, trouxe a proposta.”
Sim, sem problemas, aguardo sua resposta.”

Despediu-se dos dois senhores e disse que ficaria mais um tempo na cafeteria. Pediu um café expresso e um bolo de laranja. Pensou em Joana e na Primavera.


Primavera

- Olha, papai, que borboleta linda!

Paulo e Helena olhavam a pequena Sofia que transbordava de felicidade. “Cuidado, filha, cuidado!”.

- Papai, me empurra no balanço?

- Sim, vem cá!

- Papai, me empurra mais forte!

- Mais forte? Onde você pensa em chegar?

- Ah, papai, me empurra até as estrelas!

quinta-feira, 8 de junho de 2017

A menina




A casa ficava num lugar que não era mais lugar. Não era mais lugar por que não havia mais gentes. Um lugar só é lugar quando há gentes. A Terra só passou a existir depois que Deus criou as gentes, antes das gentes nada existia.

A casa ficava num sopé num arremedo de planície. As cercas que a circundava havia apenas algumas teimosas. No entanto, se entrava fácil por toda propriedade. Havia um poço vazio com alguma água enferrujada em seu fundo. O mato estava alto e se aproximava da casa. A entrada era de terra batida com algumas pedras resistentes que impediam corajosamente o avanço do mato. As formigas disputavam espaço com os cupins e isso podia ser visto com facilidade pelas grandes cidades que eles construíam em volta da casa. A impressão que se tinha era a de um campo de batalha do microcosmo. Algumas flores do campo surgiam e se mantinham por alguns momentos como milagre. E esse milagre atraía algumas abelhas e borboletas.

Passando pela porta de entrada surgia uma sala que guardava alguns móveis. Algumas cortinas rasgadas tentavam conter o sol. As janelas não fechavam, mas eram trancadas por grandes teias de aranhas. Contraste bonito que fazia era o raio solar atravessando as teias. O chão da sala era de madeira e a poeira flutuando iluminada pelo sol dava um aspecto de dias felizes da infância. No meio da sala havia uma mesa de madeira com quatro cadeiras. Pareciam as únicas coisas intatas em toda a casa. Havia uma toalha de crochê e um jarro com uma flor colhida recentemente. Do meio da sala surgia um corredor que levava aos demais aposentos. Um banheiro a direita, depois dois quartos. A esquerda mais dois quartos com suítes. Havia uma porta que levava aos fundos do terreno. A parte dos fundos deixava a casa mais alta por causa do declive. Construíram um jardim de inverno ali. Ainda balançava uma antiga cadeira de balanço impulsionada pelo vento ou por algum espírito que não aceitava cumprir seu fim.

Deixando a casa para trás e descendo o pequeno sopé, a menina sentou-se num resto de árvore cortada. Pegou seu diário e rabiscou um desenho da casa. Olhava o diário e se virava para olhar para casa. Apagou várias vezes o desenho tentando se aproximar ao máximo da exatidão. Escreveu uma ou duas linhas sobre a casa. Levantou-se, deixou o diário na árvore cortada e subiu um pequeno monte onde dava para avistar um pequeno riacho. Lá em cima havia uma brisa gostosa que desprendia seus cabelos e os libertava no ar. O vestido colava ao corpo denunciando o começo da sensualidade. Depois de saciada, desceu o pequeno monte, pegou seu diário e voltou pela estrada para casa.

A primeira edição

          Assim se deu o diálogo entre dois velhos amigos: - É apenas um livro. - Não, não é apenas um livro, mas a primeira e...