domingo, 30 de abril de 2017

Indecisão


arte de Alex Grey





- Qual era o problema do texto dele?

- Nenhum.

- E por que não foi publicado?

- O problema era ele, o autor. Ele sempre enviava seu manuscrito a um revisor, mas o seu caráter desconfiado sempre o fazia revisar a revisão do revisor. Daí, se alguma coisa fosse mexida ou mudada e fizesse sentido, obrigava-se a refazer todo o texto.

- Mas eu o conheço. É um sujeito bastante culto.

- Sim. Mas o que você quer dizer com isso?

- É que me estranhava nunca ter escrito nada. Nem mesmo um conto ou um ensaio. Conversei com ele certas vezes e vi que era homem de ideias originais. Lembro ter falado com Carolina: “Sabe aquele sujeito? Culto! Certamente deve estar escrevendo algo de peso. Com tanta cultura e ainda não ter nada publicado, deve ser por não se simpatizar com coisas pequenas.”

- Você acha? Tive um professor assim também de grande cultura, mas jamais escrevera algo criativo. No máximo artigos acadêmicos, eu acho.

- Mas Carolina, esse homem fala como um poeta!

- Talvez seja um Dante! Talvez esteja escrevendo a História do Mundo em versos!

- Deixa de ironia, você me entendeu.

- Lembra do Tarcísio?

- O do mestrado?

- Sim. Ele também falava como poeta. Ficou um tempo sumido e depois apareceu com aquele texto sobre os deuses da mesopotâmia. Quando o encontrei, depois de ter lido o volume sobre Javé, ele me disse: “Precisava de tempo, Carolina. Só a solidão absoluta para se criar algo absoluto!”

- Sei, mas você foi para aonde?

- Fui às montanhas. Em Davos.

- Por causa de Mann?

- Não, por causa de mim.

- Sentiu saudades?

- Sim, principalmente de você. Continua bela. Adoro sua cor. Sua voz. Você ainda pode ser minha?

- É, parece que você ficou uma eternidade nas montanhas. Perdeu a mudança dos tempos, hoje não se possui mais mulheres.

- Ah, então voltarei às montanhas!

- Não seja bobo. Adorei o Javé.

- Ora, tornou-se uma crente?

- Nada disso, idiota! Adorei de admirar!

- Eu sei. Adoro seu rosto vermelho quando se zanga.

- Tá, mas fala sério.

- Sim, subi as montanhas por causa de Mann e quis também escrever minha mágica. E as montanhas sempre foram as casas dos deuses, não? Olimpo, Sião…

- Por isso você usou uma linguagem poética?

- Sim, religião é poesia! Lembra do professor Estevão? Ele dizia: “O discurso religioso que não se expressa poeticamente é discurso racional e se orienta pela razão e não pela fé, pelo mito. Dessa forma, não se pode fazer religião de maneira racional, mas somente poeticamente”

- Professor, dessa forma retiramos qualquer vestígio de verdade da religião, não? Ela se reduz a meras ilustrações e parábolas para orientar a vida.

- Sim. A religião que almeja algo além disso deixa de ser religião e se torna filosofia ou teologia. Pois precisará se apoiar em categorias racionais.

- Entendo. Desculpe-me, mestre, mas gostaria então de saber a sua opinião sobre os religiosos fundamentalistas que interpretam suas religiosidades como verdades irrefutáveis.

- Sim. Para isso eles precisam de argumentos racionais, não?

- Sim, certamente.

- Então, até mesmo eles quando afirmam a verdade religiosa estão ao mesmo tempo dizendo que essa verdade precisa do apoio da razão, ou seja, daquilo que não pode ser encontrado na própria religiosidade. Por isso são obrigados a sair dos templos e das lendas e entrar nas bibliotecas dos ímpios em busca de elementos não-religiosos para dar sentido aos seus mitos.

- Isso no mínimo é irônico, mestre!

- Eu diria contraditório. A religião sem poesia se torna contraditória. A religião só tem sentido na linguagem fantástica da poesia. Mas é preciso que os religiosos entendam que suas religiões são apenas uma visão fantástica da realidade e não a realidade mesma.

- Entendi, mestre. Como os fundamentalistas e piedosos creem que o discurso religioso deles é revelação da realidade em si, abandonam a poesia e se aventuram na linguagem filosófica criando mais confusão do que já existe na própria poesia religiosa.

- Sim. E o precursor desse exercício foi Platão e seus discípulos mais espiritualistas. A propósito, terminei agora um breve ensaio que trata desse assunto e já mandei para o meu revisor.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Formigas




Passei por uma encruzilhada. Vi um despacho. Não pedi licença, pois não mais creio nessas crendices. Meu coração tornou-se insensível ao sagrado terreno. Vi uma procissão, não de gentes, mas de formigas que saíam do despacho. Iam levando grãos de farofa e alguns pedaços de doces. Iam levando as mandingas, os olhos grandes, algo reluzente denunciava a presença de bijuterias de lata para a pomba gira. Pude ver também algumas formigas lutando pela sobrevivência nadando na cera derretida de uma imensa vela de sete dias. Outras seguiam a procissão, indiferentes, talvez já contaminadas com os vícios do despacho. As formigas iam levando tudo aquilo para o formigueiro para ser colocado aos pés de sua rainha. Iam levando tudo para o centro da Terra.

Mais adiante, no meio do mato, vinha-me um cheiro terrível de animal morto. Era um gato com as tripas de fora. Outra procissão se formava ao seu redor. Não de gentes, novamente de formigas. Talvez pertencentes a outra seita. Talvez de formigueiros rivais. Estas levavam partes das tripas do gato. Um grupo menor, porém mais forte fazia a segurança. Seus corpos vermelhos revelavam a intensa adrenalina de promover segurança às operárias. Uma mulher tentou empurrar o gato com uma vassoura, mas as formigas vermelhas subiam na vassoura com tanta rapidez que ela largou a vassoura e corria coçando as pernas e os braços.


Lembro dessas coisas agora. Agora que morri e posso contemplar daqui de cima o mundo. Fico impressionado com a capacidade de destruição das formigas. Uma destruição tão bem organizada e disciplinada que é quase impossível de impedi-las. Elas são tão terríveis que certa vez um anjo que compartilhava comigo da mesma nuvem, disse-me: “Tá vendo essa Terra? Ela era boa, boa mesmo! Mas aí chegaram as formigas e começaram a devorá-la aos poucos e ainda continuam com a mesma disciplina. E ninguém pode parar. É inevitável.”. Olhei de novo e apenas disse: “São muitas e estão por toda parte!”. 

quarta-feira, 19 de abril de 2017

O segredo de Samuel




arte de Kengo Kuma


     Amsterdam era o nome de um bar com pista de dança. Amsterdam era uma boate com jukebox. Amsterdam era um inferninho encrustado em meio a sobrados abandonados e ocupados por vagabundos e vagabundas. E era lá que se escondia Samuel.

     Samuel era escritor e só conseguia escrever com barulho, com brigas, com música brega. Naquela sexta-feira chuvosa tocava “Garçom” de Reginaldo Rossi na jukebox e um casal surreal dançava na pista. Ela com uniforme de puta e ele com o de peão de obra. Ela usava uma minissaia que nada escondia e pela idade seria melhor esconder. Ele alisava a bunda da vagabunda enquanto ela roçava o sexo nas coxas do cowboy dos andaimes.

     Todas as sextas-feiras, Samuel saía para terminar de escrever uma crônica ou um conto que deveria ser entregue no sábado para sair no caderno literário dominical de um jornal e na revista semanal de literatura. Dizia a Ivone, sua esposa, que iria à biblioteca e depois jogar no bar com os amigos de letras. Tudo muito bem armado com três fiéis amigos e durante três anos a farsa vinha funcionando.

     Edgar era um amigo de infância de Samuel. Naquela sexta-feira, ele estava de passagem pela cidade de seu amigo. Tinha o seu endereço, pois o guardara certa vez quando se encontraram no saguão de algum aeroporto. Edgar resolveu fazer-lhe uma visita surpresa e colocar o papo em dia.

     Samuel era funcionário aposentado da Receita Federal. Desde a juventude escrevia contos e crônicas. Samuel sempre se dividiu entre o funcionalismo público e as letras. Ele dizia: “Assim como Carlos!”, referindo-se a Drummond, o poeta. Um livrinho de contos que escrevera em homenagem a um embaixador fez com que ele saísse do anonimato. Dizia que o livrinho era seu santo graal. Vendeu como água. O livrinho já teve cinco edições e já foi traduzido em diversas línguas. A edição em inglês já está na terceira. O embaixador Edward Clutter era famoso nos Estados Unidos e precisando de uma aproximação política com a Receita fez uma ponte via Samuel. Samuel ganhava. O embaixador ganhava. E ambos ficavam felizes. Esse livrinho que já fora tema de dissertação em alguma faculdade de letras, deu a Samuel uma boa aposentadoria. Ivone não podia reclamar. Nem os seus três filhos. Dessa forma havia um acordo amigável entre Ivone e Samuel: ela não o perturbaria em suas excentricidades. Samuel sabia que poderia revelar seu segredo à Ivone, mas ela não engoliria que ele se metia num bordelzinho para escrever. Ela diria: “Você vai atrás das putas!”. Contudo, Samuel não gostava de putas, mas gostava do ambiente infernal que elas viviam. Paradoxalmente, nunca escrevera nada sobre esse submundo de putas e gigolôs, apenas nutria sua imaginação daquele ambiente para produzir justamente a antítese. Qualquer pessoa mais ou menos equilibrada diria que Samuel precisava de terapia. E ele tentou, mas viu que nenhum terapeuta conseguiria atingir o âmago daquela excentricidade.

     Edgar chegou ao número do prédio de Samuel e tocou o interfone da portaria. O porteiro com voz grave atendeu: “Pois não?” “Boa noite, meu nome é Edgar, sou amigo de Samuel e Ivone, mas esqueci o número do apartamento deles.” “Só um momento.” Respondeu o porteiro e já tocando no botão de interfone do apartamento de dona Ivone. “Boa noite, dona Ivone.” Saudou o porteiro com a voz grave, porém mais suave. “Boa noite, seu Joca.” “Dona Ivone, encontra-se na portaria um senhor de nome Edgar e diz conhecer a senhora e seu Samuel.” Falou o porteiro como se anunciasse a chegada de algum membro da corte. “Sim! Edgar! Que surpresa agradável! Pode deixá-lo entrar, seu Joca, muito obrigada!” Respondeu Ivone sem esconder a surpresa agradável de rever um amigo de longa data. “O senhor pode subir, apartamento 310, terceiro andar, saindo do elevador a terceira porta a esquerda” Orientou o porteiro mostrando total conhecimento do prédio. “Muito obrigado, amigo, tenha uma boa noite!” Respondeu educadamente Edgar. “Boa noite, senhor!”

     Ivone costumava receber a visita de sua amiga Joana às sextas-feiras enquanto esperava Samuel voltar do bar. E agora a sexta-feira seria mais interessante com a visita de Edgar. Os três conversaram bastante e como Samuel demorava, Edgar perguntou onde ficava o tal bar e ele mesmo iria até Samuel. Aproveitaria e tomaria alguma bebida e lá mesmo conversariam, pois ainda naquela madrugada pegaria um voo de volta para casa. Ivone então fez um pequeno mapa para Edgar e esse então se despediu e seguiu para o bar. Chegando ao bar logo avistou os três amigos de Samuel, pois a descrição de Ivone era perfeita. Aproximou-se da mesa e se apresentou: “Olá, senhores, boa noite. Meu nome é Edgar, sou amigo de Samuel e estive em seu apartamento e dona Ivone me disse que o encontraria aqui, jogando.” “Olá, meu nome é Antunes, muito prazer. Acho que Samuel já nos falou sobre você. É da Receita?” Antunes era o amigo mais antigo de Samuel entre os três da mesa e era ele quem coordenava o segredo do amigo. Edgar ficou satisfeito em saber que era mencionado entre os amigos de Samuel e emendou: “Sim, sou da Receita. Nos conhecemos desde a juventude.” “Ora, amigo, sente aqui com a gente e beba alguma coisa enquanto esperamos o Samuel voltar… do banheiro” Convidou o sempre apressado Costa. Sob o olhar raivoso de Antunes, Costa baixou os olhos para o baralho. Daí foi a vez do Jardel desviar o assunto: “Edgar, não? Sim, Samuel nos falou de você. O que faz por aqui, amigo?” “Apenas uma conexão para depois seguir viajem para casa, mas como meu voo atrasou e só vai decolar na madrugada resolvi fazer uma visita rápida ao Samuel.” Explicou Edgar.

     Os quatro jogavam sueca esperando o amigo em comum que nunca chegaria. Antunes, Costa e Jardel sabiam, mas Edgar, não. Samuel quando terminava sua escrita seguia direto para casa. Mandava um sms para Antunes agradecendo. Nicolau, dono do bar, um português de barba branca que fazia jus ao seu nome, começava a pigarrear. Pigarro que significava: “hora de fechar, cambada!”. Os amigos se levantaram e seguiram em direção à saída do bar. Se despediram, ficando apenas Edgar e Antunes. “O que está acontecendo, Antunes? É mulher?” Perguntou astutamente Edgar. “Não. Quer dizer, é. Mas não é putaria, entende? É trabalho.” Respondeu Antunes com certa dificuldade, talvez devido ao cansaço. “Trabalho? Samuel trabalha a noite?” Perguntou com grande curiosidade, Edgar. “Sim, mas somente às sextas-feiras.” Abrandou, Antunes. “E o que ele faz?” Continuo o amigo inquisidor. “Escreve, ora. Samuel é escritor, pô.” Com certo incômodo respondeu, Antunes. Não gostava de ser interrogado como se fosse bandido. Já passara dos sessenta e não admitia ser tratado como um adolescente irresponsável. Edgar se desculpou. Edgar resolveu não insistir, chamou um táxi para o aeroporto e se despediu calorosamente de Antunes, insistindo com as desculpas. Pediu que mandasse um grande abraço a Samuel e que numa outra oportunidade viria vê-lo.

     Antunes agora caminhava sozinho pela rua deserta e escura. Conhecia o caminho até sua casa mesmo se andasse de olhos fechados. Costelinha, o vira-lata do ferro-velho o saudou. Quando se aproximava de casa, seu celular alarmou um sms: e aí, amigo, tudo bem? Perguntou Samuel. Tudo na paz. Um amigo seu, edgar, mandou um abraco. Respondeu Antunes. Edgar tava aqi? pqp, saudade daqele puto. Digitou Samuel. ta ok. To chegando em casa, to cheio de sono, depois a gnt se fala. Despediu Antunes.

     Samuel olhou o relógio do celular. 16:30h. A mocinha da biblioteca tocou levemente em seu ombro e disse: “Estamos fechando, senhor.” “Sim, desculpe-me, mas precisava terminar esse conto. É para amanhã, sabe?” Explicou se desculpando. “Não precisa se desculpar, amanhã funciona até o meio-dia, tá?” Disse a amável mocinha. “Ah, sim, amanhã não venho, tenho uma roda de carteado com amigos. Mas obrigado, você é muito gentil. Fica com Deus.”

domingo, 16 de abril de 2017

Adão, Romeu, Eva e Julieta

 
    Arte de Shinyoung Kim



Adão e Eva se encontram na Inglaterra.

Eva diz: - Não acredito em deus, mas acredito em milagres.
Adão diz: - Não acredito em milagres, mas acredito em deus.
Eva filosofa: - O que em mim é escassez, em você é abundância.
Adão propõe: - Por que não unimos a minha escassez e a sua abundância ou a sua abundância e minha escassez?
Eva ri: - Duas propostas iguais.
Adão sem graça: - Sim.
Eva cria o casamento: - Sim, aceito sua proposta. O que em mim é abundante juntar-se-á ao que em ti é escassez. E o que em mim é escassez juntar-se-á ao que em ti é abundante.
Adão confirmando: - Sim, estaremos completos, pois minha escassez será eliminada por sua abundância e sua escassez pela minha abundância.
Eva conclui: - Exato! E seremos uma só carne!
Adão encerrando: - Que assim seja!


Romeu e Julieta se encontram no Éden

Julieta: - Você gosta de maçãs?
Romeu: - Não.
Julieta: - Nem eu.
Romeu: - Vamos fugir daqui? 
Julieta: - Sim!

quinta-feira, 13 de abril de 2017

De onde vem as árvores




- Papai, de onde vem as árvores? Do centro da terra?

[ O jardim estava impecável. O verde da grama parecia um verde real, não um verde que se apresenta aos nossos sentidos, mas o verde etéreo. O verde platônico, ideal. Talvez fosse o sol que fizesse isso, pois o sol parecia também diferente. Ou talvez fosse nossa mente que produzia esse idealismo dando um sentido superior às coisas. Colocaram um balanço num galho forte da árvore e crianças revezavam balançando e gritando. Outras corriam atrás dos cachorros ou os cachorros que corriam atrás delas. Uma manga caiu e me lembrei de Newton. Se Newton fosse brasileiro não seria maçã, mas manga. A diferença é que em vez de descobrir a gravidade, ele apenas comeria a manga. ]

[ - Olha, tem flores novas! Olha, quantas borboletas, mamãe! Qual é o coletivo de borboletas, mamãe? São muitas! Tira uma foto, mamãe! Não, vamos tirar uma selfie! ]

[ De todas as árvores que havia na praça, apenas uma lhe chamava a atenção. Ela permanecia sem folhas, completamente nua. Olhou para Joana, tirou um canivete do bolso e começou a talhar na árvore nua suas iniciais. Ela achou ruim, pois havia tantas árvores lindas na praça e ele escolhera aquela sem beleza para gravar seus nomes. Ela não disse nada, mas Antônio conhecia o olhar da mulher que escolhera, já sentia que era uma só carne com ela. - Não fique triste, Joana. Veja essa árvore, olhe sem a submissão dos sentidos, ela é única em meio a tantas parecidas. Olha, minha Joana, ninguém talhou seus nomes nela, essa é a nossa árvore. Ela servirá de símbolo eterno de nosso amor. E quando eu te irritar, você virá até aqui e me perdoará. E quando ficarmos velhos, seremos parecidos com ela, sem folhas, e seremos amigos para sempre. Olha, minha Joana, olha a nossa árvore, ela é única. ]

[ Pelo lado norte da praça desciam algumas pessoas. Um vinha na frente, com olhar alegre. Sorria mesmo. Parecia estar muito alegre. Era desse olhar que precisávamos! Atrás dele vinham homens e mulheres. Passou pelas crianças do balanço e um dos homens mais afoito segurou o balanço com medo que este acertasse o sorridente homem. Ele parou e segurou o braço do afoito. Chegou-se até o balanço e começou a balançar uma criança. Ele ria, a criança ria, as pessoas riam. Joana chamou Antônio e apontou para aquele homem que balançava a criança. Antônio disse: - o que foi, você o conhece? Joana respondeu: - está com ciúmes? Antônio sem graça, Joana beijou seu rosto. ]

[ Joana puxou Antônio e mostrou que uma roda de pessoas se formava em volta daquele homem sorridente. Correndo e puxando Antônio chegaram até a roda. O homem falava: - olhai os lírios do campo! - olhai as aves do céu! ]

- Parece que lá no centro da terra, papai, deve ter um feiticeiro barbudo que tem uma máquina enorme e faz as raízes das árvores, as raízes começam a ser empurradas para aqui em cima e perfuram a terra e começam a subir.

- Tá, e como surgem as folhas, filha?

- Ora, papai, o feiticeiro do centro da terra passa uma loção mágica nas raízes que a máquina produz. Essa loção tem um efeito mágico quando tocada pelo sol, esse efeito faz surgir as folhas e os frutos. Como esse feiticeiro possui diversas loções mágicas, para cada raiz ele utiliza uma, por isso essa variedade de árvores, entendeu, papai?

- Tá, e por que em algumas estações isso não acontece?

- Aí, é porque o feiticeiro está de férias e ele viaja para sua casa e vai visitar sua filha, uma princesa…

[ - Joana, lembra daquela praça que talhei nossas iniciais numa árvore que não tinha folhas? - Sim, lembro. - Ela está completamente abandonada. Nenhuma árvore. Nem mesmo a nossa. - E você pensou que seria a nossa árvore. - É, nada é para sempre. ]

[ - Olha, aqui é um bom lugar. - Esse terreno tem dono? - Não, não, está abandonado. - O que são essas marcas no chão? - Ah, aqui foi lugar de execução no passado. - Sério? - Sim, o povo agora pensa que o lugar é amaldiçoado. - Ora, essas coisas ainda existem? - Você tem certeza que deseja investir num local como esse? - Sim, não sou supersticioso. - Sei, mas o povo é e você precisa do povo, não? - Sim. ]

[ O homem que sorria continuava a falar para as pessoas que o rodeavam. Uma criança chegou mais perto e ele a puxou para seu colo. Antônio e Joana prestavam bastante atenção. O homem agora falava de maneira poética sobre seu pai, sobre a casa de seu pai. Uma mulher se lançou aos seus pés e começou a chorar. Os homens que o acompanhavam retirou a mulher e ele novamente segurou os braços ansiosos e tocou na mulher. A mulher o olhou. Ele falou algo somente para ela. Ela sorriu. Ele sorriu. Os homens que o acompanhavam se afastaram. E aquele homem alegre ficou um bom tempo falando de diversas coisas que serviam para todos: homens e mulheres. Sua linguagem era universal. Sua linguagem era como o verde tão verde da grama daquele dia. Suas ideias eram tão fortes como a força do grande galho que sustentava o balanço das crianças. Sua aparência era tão real que nos desnudavam a todos, como a árvore nua do centro da praça que agora tinha encravada as iniciais de Antônio e Joana. ]

[ - Joana, você lembra daquele homem que falava com tanta sabedoria e de maneira poética na praça? - Lembro sim, acho que era um artista, não? - Não sei, mas nunca mais soube dele. - É, lembra que tinham umas pessoas que ele sempre tinha que chamar a atenção? - É verdade, é aquela coisa que o homem tem em si, vontade de dominar o outro, não? - É, alguém sempre deseja dirigir a situação, dominar as ideias. - É, mas aquele sujeito era difícil de dominar, não? ]

- Tá, esse feiticeiro é eterno?

- Não, papai, nada é para sempre.

- E quando ele morrer, quem fará as árvores?

- Ora, papai, ele sempre está preparando um discípulo para continuar seu trabalho. Ele mesmo já foi discípulo de seu mestre.

- Nossa, filha, quanta disciplina, não?

- Nem sempre, papai. Já percebeu que as estações se repetem, mas o mundo nem sempre se comporta da mesma forma?

- Sim, é verdade.

- Um discípulo leva mais a sério que outro. Mas as árvores vêm. E elas vêm conforme os discípulos, entende, papai?

- Entendo.

- Nada é para sempre, papai.

[ - Eu não aguento mais ser chamado a atenção por ele. - Ele nos trata como crianças. - Deixamos tudo por ele e é assim que ele nos retribui? - Ingratidão! - Eu não gosto de seu modo irônico quando colocamos nossas opiniões, quando lhe revelamos nossos ideais e valores. - É verdade, para que tanta ironia, não? - Você fala: “olha nossa casa” e ele diz: “isso nada é”. - Já estou farto e vocês? - Também. - Também. - Temos que ser mais ofensivos. - Ele não é maior que o movimento! - E ele tem uma missão e tem que estar focado na missão! - É um irresponsável! - Olha, muitas vezes o acho desrespeitoso com os grandes mestres. - Também já vi algumas vezes ele ironizando mestres célebres. - E essa mania dele usar uma linguagem cheia de códigos. - Também não gosto disso. - Tenho um conselho: o que vocês acham de pedirmos a opinião dos mestres? - Sim, temos que enquadrá-lo no ideal. ]

[ - Não! Vocês não entendem. Eu sou livre. Eu conheço o que quero. Eu sei o que quero e não preciso pedir conselho a vocês. Não sigo seus ideais, não moro em suas casas, vou aonde desejo ir e convivo com quem desejo conviver. Não sou dominável ou domesticável. Sou como uma fera! Sou como um leão! ]

- Papai, de qual árvore você mais gosta?

- Daquela ali, com flores amarelas.

- Ah, sim.

- Você gosta daquela sem folhas?

- Não, papai.

- Por que não?

- Porque dela alguns homens pegaram para fazer algo mau…

[ - O que aconteceu? - Mataram-no. - Por quê? - Os mestres! - Meu Deus! - Mas por que fizeram isso? - Forçamos muito, eu acho. - Onde estão os outros? - Sumiram. - Fugiram? - Não, não era preciso, os mestres se arrumaram com o judiciário. - Então por que fugiram? - Não fugiram, sumiram. - Vergonha! ]

- Que mau?

- Acenderam uma grande fogueira para queimar um inocente, papai.

- Nossa! E quando foi isso?

- Todos os dias, papai.

[ - Por que me olham assustados? - Não sou domesticável, sou uma fera, sou um leão! ]

[ - Antonio, juro que um dia passei por aquela praça, juro ter visto aquele homem de novo. - Impossível, Joana, aquilo está abandonado. - Não sei, parecia com ele e tive a mesma sensação que tive da primeira vez que o vi. - Sei, mas seria muito bom que fosse ele, aquele dia foi especial. - Sim, quem sabe ele volta? - Ele? - Sim, aquele dia. ]

- Filha, vamos embora, sua mãe deve estar preocupada.

- Vamos sim, papai. Só um momento, papai.

- O que foi?

- Olha, olha papai, aquela flor…

- Linda!

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Meu filme vai passar no Céu [sem as partes chatas]



Morreu. Ainda tinha consciência. Chegou à conclusão de que a consciência era a alma, ou espírito. Havia um corredor bem estreito a sua frente. No final dele uma porta vermelha aberta. Podia ver movimentos além da porta. Agora ouvia vozes. Um idioma que nunca ouvira, mas o estranho é que entendia o que as vozes falavam. Atrás dele a parede o empurrava em direção à porta vermelha aberta. Como uma mão que o conduzisse, dizendo que não teria como evitar de seguir em frente. Seguiu. Percebia que quanto mais se aproximava, mais a temperatura aumentava. Pensou que poderia ser pela presença daquelas outras pessoas. O volume das vozes aumentava, vozes femininas e masculinas se misturavam. Quando ultrapassou a porta viu um grande salão iluminado por uma luz fraca. Olhou as outras consciências que ali estavam e mesmo que suas vozes passassem uma ideia de alegria, elas traziam em si uma tristeza, algo que se infiltrara como um vírus e a alegria era como a aplicação de alguma droga para produzir dissimulação de humor. Fez-se silêncio. Um silêncio imediato. Aquilo revelava disciplina ou temor. Pensou que o silêncio não deveria ser pela sua presença, pois, como ele, recém-chegado, poderia receber tal veneração. Mais adiante pôde ver o motivo do silêncio. Um ser que ele não conseguia descrever com sua linguagem projetava-se sobre as consciências. A sua presença provocava um temor exacerbado. Medo mesmo. Abaixo dele vinham outras criaturas também difíceis de serem descritas e vinham num coro repetitivo que parecia uma procissão. As consciências ali presentes ficaram plenamente mudas. Só se ouvia os movimentos desse ser aterrador e o coro que lhe seguia. A porta atrás dele se fechou com a mesma reverência. O ser veio em sua direção e parou a sua frente. E se deu o seguinte diálogo.

- Seja bem-vindo, estrangeiro!
- Obrigado.
- Esse é o meu reino e esses são meus súditos. Eu sou o seu deus-rei!
- Não conheço seu idioma, mas o entendo. Como pode isso?
- Meu servo, você não está mais preso às limitações de seu corpo terreno, sua alma está liberta, aquilo que lhe era obscurecido pela matéria agora se manifesta livremente, explicitamente a você. Os seus sentidos foram completados pela plena consciência. Nada mais lhe é velado, mas tudo é-lhe revelado!
- Sei. E agora o que se faz?
- Bem, você deverá passar por um processo de adaptação. Por mais que sua consciência esteja liberta, ela precisa ser treinada. Deverá conhecer as ordens do dia, a hierarquia e as suas tarefas.
- Sério? Pensava que aqui não haveria essas burocracias terrenas.
- Sim, entendo. Mas na terra vocês apenas estão estagiando, entende?
- Ah, sim.

O deus-rei fez uma pausa e chamou uma das criaturas do coro e deu-lhe uma ordem que ele não ouviu. Imediatamente sumiu correndo pelo grande salão. Fez um gesto com a mão e as consciências voltaram a falar. Muitos vieram em sua direção para dar-lhe as boas-vindas. Uma coisa o deixava surpreso, não via nenhum conhecido. Todos eram estranhos a ele. E como se lesse seu pensamento, o deus-rei, disse:

- Não, meu servo. Suas identidades terrenas foram apagadas. Não adianta tentar encontrar alguém que você conheceu na terra. Aqui são todos novas criaturas. Tudo é novo, entende?

Ele apenas deu um sorriso sem graça, melancólico. Foi conduzido até uma sala escura que tinha um telão.

- Isso te deixou triste?
- Sim.
- Por quê?
- Sabe, lá na terra o que mais me assustava com a morte era a ideia de nunca mais ver as pessoas que você amava.
- Sei, mas entenda, tudo agora vai bem. Você terá a chance de fazer novas amizades e de ter novos amores.
- É verdade. Talvez seja ainda resquícios dos meus sentimentos terrenos, não?
- Sem dúvida.

As criaturas e as consciências começavam a ocupar os lugares na sala com telão. Algumas luzes amarelas foram ligadas para indicar os principais lugares. Uma cadeira que mais parecia um trono era o lugar do deus-rei. Ao seu lado uma outra cadeira, também com certa importância, mas abaixo da do deus-rei estava reservada para ele.

- Vamos ver um filme?
- Sim, vamos sim. Enquanto minhas criaturas preparam o seu curso de adaptação, costumamos entreter nossos recém-chegados com cinema.
- Legal. Que filme você escolheu?
- O seu filme.
- O meu? Qual?
- O da sua vida.
- Como assim?
- Ora, o filme da sua vida terrena. Todas as consciências que aqui chegaram viram com seus novos camaradas os seus filmes. É bastante divertido.
- Bem, isso me pegou de surpresa. Acho que isso pode ser embaraçoso.
- Ora, por quê?
- Bem, existem coisas da minha vida que sinto vergonha e não gostaria que fossem reveladas a estranhos, sabe?
- Entendo. Mas vou te confidenciar algo. É justamente aquilo que você sente vergonha que nós mais adoramos por aqui. Aquilo que te denigre é nosso combustível. Isso é a verdadeira comédia, não concorda? Rir das desgraças alheias!
- Bem, mas eu achava que aqui, por ser um lugar de plenitude dos sentidos, da razão, seríamos mais corretos.
- Rá! Não, meu servo, aqui é o lugar da realidade e não da ficção!
- Entendo, mas o que eu poderia fazer para impedir isso?
- Nada.
- Proponho uma coisa. Posso assistir sozinho ao filme e sugerir algumas edições?
- Rá! Você é realmente engraçado. Aqui eu sou o produtor e diretor do cinema. Vou lhe fazer outra confidência, já editei seu filme. E para ser sincero, as partes que você se envergonha de sua existência receberam uma edição especial, com grandes efeitos. Tenho certeza que todos gostarão.
- Por favor, não.
- Chega de conversa e vamos ao filme!
- Misericórdia!

A palavra pronunciada por ele revelava verdadeiro desespero. Todos pararam e o olhavam assustado. O deus-rei agora tinha uma aparência medonha. Uma portinha do lado direito do telão se abriu. Uma outra criatura, bem diferente daquelas que ele já vira ali, apareceu na portinha. Fez um sinal para o deus-rei e este foi até ela. Conversaram. O deus-rei retornou com a face medonha agora mais aterradora e disse:

- Vá! Espero que volte logo!
- Ir? Ir para aonde?
- Saia daqui, seu servo de merda! Vá até a portinha e siga aquela criatura.
- Por quê?
- Porque você tem que ir, vá!
- E o meu filme? Vocês verão?
- Não, não enquanto você voltar. Agora vá!

Ele ficou aliviado de saber que seu filme não passaria naquele momento. Correu até a portinha e cada vez que se aproximava daquela criatura sentia-se mais leve. Sentimento bem diferente de quando chegara àquele lugar escuro.

- Venha, não precisa ter medo.
- Sei disso, sei disso naturalmente e é estranho.
- Seja bem-vindo. Vamos subir?
- Subir? Existe o lá em cima?
- Sim, amigo.
- Amigo? Nos conhecemos?
- Não, mas tratamos todos os recém-chegados por amigos.
- Ah, sim.
- Diferente daí, né?
- Sim, bem diferente.
- Preparado para a subida? Ela é bem longa.
- Pensava que haveria um jeito mais rápido de subir.
- E tem, mas o modo mais lento é melhor para os recém-chegados, pois podemos nos conhecer melhor, não?
- Sim. E quanto mais tempo demorar melhor.
- Por quê?
- O deus-rei ia passar o filme de minha vida e todos veriam.
- Qual o problema?
- Ora, existem mais coisas vergonhosas em minha vida do que das que sinto orgulho.
- Sei.
- Pedi gentilmente a ele que fizesse alguns cortes, pois me deixaria muito envergonhado, ainda mais perante pessoas que não conheço.
- Não conhece? Não, meu amigo, ali havia pessoas que você conhecia, sim. O problema era a adaptação. Você ainda está sob o efeito da adaptação. As pessoas que te conheceram na terra e ali se encontram te reconheceram, mas seguem estritamente as ordens dele.
- Nossa! Sério? Meu Deus!
- Sim. Após passar o efeito de adaptação você mesmo reencontraria alguns amigos e amigas. E eles relembrariam contigo todas as cenas mais impactantes da sua existência; inclusive aquelas que eles não conheciam antes de serem reveladas pelo seu filme. E o que parece, o cinema dele é a maior diversão naquele lugar.
- Nossa! Que crueldade! E por que você foi até lá?
- Porque você nos chamou.
- Chamei?
- Sim.
- Quando?
- Quando sua consciência plena apelou para a Misericórdia. Somos todos Misericórdia.

Seus olhos embaçaram com as lágrimas. Lembrou de sua mãe. Misericórdia era uma palavra que sempre estava na boca de sua mãe. E como um instinto natural quando diante de um grande acontecimento vexaminoso apelou sinceramente em seu coração o apelo materno. Como se tivesse voltado a ser um menino perdido e que desesperadamente procurava seus pais. Podia ver o semblante terno de sua mãe e os braços fortes de seu pai. Misericórdia era uma palavra que lhe levava para casa, para a segurança e cuidado de seu lar.

- Amigo, eu reconhecerei as pessoas lá em cima?
- Sim, certamente.
- E elas me reconhecerão?
- Sem dúvida.
- Passarei também por uma adaptação antes?
- A adaptação já começou, amigo. A adaptação é a subida.
- Ah, sim. Posso lhe fazer outra pergunta?
- Quantas quiser. As perguntas fazem parte da adaptação.
- Lá também passará o filme de minha existência?
- Sim.
- Sei, já esperava isso.
- E por que essa preocupação?
- Já falei, tem coisas de minha vida que me envergonho...

A criatura começou então revelar todas suas vergonhas. E ele se assustava com o seu conhecimento tão profundo da psicologia humana. Suas vergonhas eram ditas por ele de uma maneira que não o envergonhava mais. Era como se suas palavras ao revelar cada pecado cometido fossem apagando, o perdoando.

- Engraçado, amigo. Ouvir você falando e listando todos meus erros não me senti pesado como me senti somente com as ameaças do deus-rei; mas, ao contrário, me sinto leve.
- Sei.

A criatura o olhava fixamente e seu olhar o prendeu. Dentro de seus olhos contemplou algo que necessariamente deveria ser a verdade. Seus olhos o afundavam numa tranquilidade plena. Seu semblante era como chegar em casa, estar seguro. Sabia que poderia revelar qualquer coisa a essa criatura. Seus olhos diziam: “Está tudo bem, amigo.”

- Olha, amigo, sinto que posso confiar em você. E já afirmo que confio em você. Não tenho mais medo de ver meu filme com outras pessoas. Sinto até mesmo um alívio, sabe? Nunca senti tanta paz em minha vida como eu sinto agora. Seu semblante, seus olhos me levaram ao único lugar que posso ser quem eu sou de verdade, casa. Você me fez voltar para casa e aqui eu queria ficar para sempre. Ser seu amigo para sempre. Prometo melhorar em nome de sua amizade. Perdoa meus erros e pode usá-los para melhorar outras pessoas. Eu não me importo, o que importa mais é cultivar a nossa amizade; caso isso seja interessante ao amigo.
- Ora, amigo, vejo que sua adaptação já se aproxima do fim. E não se preocupe com o filme de sua vida. Lá em cima, meu Pai é o produtor e Eu o diretor, entende? Durante a subida já fazia as edições. Durante nossa conversa eu já ia retirando as injustiças, vinganças, rancores, invejas, fofocas, adultérios, falsificações, roubos, mentiras, blasfêmias, etc. Seu filme está limpo!
- Jesus?   

sábado, 8 de abril de 2017

Quando escrevo




Quando escrevo não é meu cérebro quem trabalha, mas algo além do cérebro; não é matéria, mas algo além da matéria; é como música boa que invade o ser ou sei lá o quê. O cérebro só trabalha as sensações, interpretando os materiais; mas as letras, não, elas vêm de outro lugar, sim, elas nos são reveladas por outra fonte. O cérebro escreve artigos, pois é metódico e segue regras. Mas a poesia, a ficção, os contos, esses não, são como os mitos, a imaginação, não seguem regras, mas são livres! Na hora da morte de alguém não dá pra se chegar com uma tese ou monografia; mas só poesia e ficção satisfazem essa dor que é além da dor...

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Dúvida



Somos imagem e semelhança de deus ou deuses. Somos mais que simples percepções ou sensações. Sabemos que "estamos" e que "somos". E com essas semelhança e imagem herdamos a dúvida. Quem não duvida ainda dorme o sono de adão. Só duvida quem experimentou o não-deus, o Seu contraditório. Só quem pode alcançar a fé é quem duvida.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

O ímpio e o santo







Santo: Deus exige exclusividade!
Ímpio: Ah, para com isso, seu lunático! Quem exige exclusividade são os sacerdotes!
Santo: Você não sabe o que fala. Peço a misericórdia de Deus sobre a sua vida. Vou orar por você.
Ímpio: Até sei que fala com sinceridade, mas em vez de orar por mim, ore por você mesmo. Você vive uma ilusão. Uma ilusão que te convenceram como verdade. E como essa verdade é algo que lhe dá conforto, você a abraça sem questionar muito. E fica aí repetindo esses bordões bobos.
Santo: Não, meu caro. Não fui iludido por homem nenhum. Fui convencido pela leitura do Livro. Não conhece os mandamentos?
Ímpio: Sim. Conheço o Livro e os mandamentos. O Livro e os mandamentos escritos por sacerdotes.
Santo: Aí que você se engana. Escrito sim por homens religiosos, mas sob a inspiração de Deus.
Ímpio: É? E quem disse isso?
Santo: O próprio Deus!
Ímpio: Você o ouviu?
Santo: Claro que não, mas Ele usou esses homens inspirados para falar. E esses homens inspirados escreveram.
Ímpio: E quem disse que esses homens foram inspirados por Deus?
Santo: Ora, o próprio Deus!
Ímpio: No Livro?
Santo: Sim! Basta ler os mandamentos!
Ímpio: Ok. Os homens inspirados por Deus escreveram no Livro que eles, os homens inspirados por Deus, são inspirados por Deus. Esses mesmos homens escreveram os mandamentos de Deus, mandamentos que Deus lhes deu. Será que você não percebe que a sua fé é fé na escrita de homens que se dizem inspirados por Deus e não uma fé na palavra que você ouviu do próprio Deus?
Santo: Mas eu acredito no testemunho desses homens.
Ímpio: Isso! É disso que eu estou falando, meu caro. A sua fé é fé no testemunho desses homens que se dizem inspirados por Deus.

Santo: Entendo.

terça-feira, 4 de abril de 2017

A bíblia




- Cadê a sua tão famosa biblioteca?
- Ah, sim. Está no quarto no final do corredor. Quer vê-la?
- Sim.

Era um quarto pequeno com uma estante. Na estante apenas um livro.

- Essa é a sua biblioteca?
- Sim.
- Mas onde estão todos os livros que você me falou que tinha?
- Ali, na estante.
- Mas você me disse que tinha vários livros. Livros com histórias maravilhosas. Histórias de reis, de aventureiros, de desbravadores, de homens e mulheres sonhadores. Disse que havia muita poesia, epopeias, acontecimentos marcantes, personagens reais com uma psicologia profunda, mitos e lendas que forjaram as ciências, muita sabedoria que até hoje serve de referência literária. Disse também que havia livros filosóficos que abordavam de maneira brilhante questões éticas e morais. Disse que havia uma coleção de cartas, biografias e diários de viagem. Onde estão esses livros?

- Ali, meu caro, naquela coleção dos escribas judaicos!

A primeira edição

          Assim se deu o diálogo entre dois velhos amigos: - É apenas um livro. - Não, não é apenas um livro, mas a primeira e...