sexta-feira, 31 de março de 2017

Despejado




           Descia a ladeira cambaleando, tropeçando em algumas pedras pontudas. A cada tropeçada seguia um palavrão. Um gato cruzou-lhe a proa e tomou um chute de través. Gritou agonizante tão alto que chamou a atenção de um grupo de mulheres que conversava na frente do portão de um sobrado. – Cruel! – Ele parou e se virou para elas e mostrou-lhes o dedo médio em riste, dizendo desaforos. – Cruel! - Dois homens apareceram na sacada e o ameaçaram com pistolas. Ele correu e terminou a descida da ladeira rolando. – Filho da puta! – Se não fosse a anestesia do álcool certamente não levantaria como se levantou, claro que o álcool recebeu a ajuda das ameaças dos homens com pistolas. Certamente, amanhã as dores e os inchaços apareceriam. Continuou seguindo pela rua mal iluminada, esbarrou numa lata de lixo e com ódio a chutou, espalhando todo o lixo que estava nela. Alguns ratos e algumas baratas corriam no meio do lixo e ele começou a pular. Pegou um pedaço de cabo de vassoura e conseguiu acertar um rato. O rato guinchou e o sangue espirrou. Ele deu uma gargalhada de satisfação. As baratas ele pisoteava como um deus enfurecido com sua criação. Na esquina havia um boteco aberto, parou, chegou ao balcão e pediu cachaça. O balconista recusou servi-lo dizendo que já iria fechar. – Sua cara não tá boa, amigo, vá para casa! – Ele gritou, ameaçou e foi impedido por alguns homens que bebiam. Ele chutou um, outro e mais outro. Aqueles homens não eram como ratos ou baratas, revidaram e o chutaram com bastante violência do bar. Seu estado estava mais degradante. Não tinha para onde ir. Ritinha o chutara de sua casa, pois decidiu não suportar mais o namorado sempre bêbado. Naquela noite quando subia a ladeira já alcoolizado encontrou no portão o irmão de Ritinha que o colocou para fora a pontapés e disse. – Acabou, seu merda, não volte mais aqui! Agora estava num pequeno mirante que tinha uma parede rochosa. Deserto. Olhou lá para baixo e calculou a queda. Uma última lucidez veio-lhe à mente e se atirou. 

Uma religião razoável




- Ora, se você deseja seguir uma religião razoável, te aconselho a ler o Novo Testamento, e das parábolas de jesus pode se criar uma religião muito mais que razoável. Ou você pode ler em mateus as bem-aventuranças e ali formular um belíssimo manual de ética e moral.

- ...?

- Não, não meu jovem, não entregue aos sacerdotes ou mestres aquilo que só você pode fazer. Nem mesmo os bons sacerdotes ou bons mestres podem criar uma religião razoável para você.

- ...!

- Não, de maneira alguma, acho que eles são sim boas referências, mas o criador é você.

- ...?

- Um conselho sobre isso? Ora, saia dela, já! Imediatamente! Ficar nela é bem pior que estar na mão de um único mestre, mas é se colocar em meio à confusão.

- ... .

- Não, ela não diz isso. Isso é o que eles dizem que ela diz. Leia você mesmo e encontre a sua religiosidade, pois esta é individual. Desde que descobrimos a existência de um único deus que descobrimos também a existência do indivíduo.

- ... !

- Foi um prazer, faça isso e viverá!  

quarta-feira, 29 de março de 2017

Que jesus?




- Tem jesus?
- Temos sim. Qual você quer?
- Quais que você tem?
- Bem, temos uma boa variedade. Acompanhe-me, por favor. Pode sentar aqui nessa poltrona e chamarei uma funcionária para lhe mostrar nossos modelos.

- Boa tarde, senhor. Meu nome é... O senhor procura algo em especial?
- Sim, mas... Olha, gostaria de ver os modelos que vocês têm.
- Pois não. O senhor deseja alguma bebida?
- Vinho.
- Sim, ... Traga vinho para nosso cliente ...
- Bem, vamos começar, pode entrar ... Olhe, senhor, esse jesus tem o olhar terno, cabelos na altura do ombro, possui algumas cicatrizes para servir de lembrança e é super tolerante.
- Sim, as cicatrizes são reais?
- Não, senhor. Não ...
- Tá, posso ver outros?
- Sim, sem dúvida. Pode ir ... O vinho está bom, senhor?
- Ah, sim. Muito bom.
- Esse modelo é bem atual. Tem um olhar feminino, a pele é bem cuidada, veja, pode tocar.
- Sim, muito. Mas ... Eu poderia lhe falar em particular?
- Pois não, senhor.
- Olha, mas é uma mulher. Acho que não fica adequado ...
- Bem, é a nova tendência, mas, tudo bem. Pode ir ...
- Desculpe-me, mas prefiro um modelo mais clássico, entende?
- Perfeitamente, senhor. Entra ... Olhe, senhor, esse usa terno e gravata. Utiliza uma bíblia e tem uma teologia bem eloquente. Principalmente nas questões, como posso dizer, nas questões financeiras, entende?
- Sim, entendo. É disso que lhe falava. Esse é um clássico. Só uma pergunta, se não se importa.
- Absolutamente.

- Vem com chicote?

terça-feira, 28 de março de 2017

Um bilhetinho eletrônico a uma filha




... Você pode me ler? Não sei, mas vou escrever assim mesmo, depois você lê. Olha, sou eu. Sim, sou eu, filha. Outro dia passei por uma cafeteria e a fumaça do café subindo como serpente, aí pensei em você. Lembrei das manhãs, café pronto e você já grudada num livro qualquer. Proust tinha razão, tinha não, tem. O mundo e suas manifestações vivem nos levando ao passado. Sempre estamos em busca do tempo perdido.

... Não fui mais ao sebo, mas mês que vem eu vou. Tô lendo mais. Tô vendo mais filmes. É triste o ambiente alternativo estar dominado por uma turminha que pensa que tem que seguir uma agenda, não? [ viu quantos “quês” na frase passada? ] – Foda-se a norma culta! Hahahaha... Não quero te zoar, juro! Você viu que terminei o volume hum de Chalamov, né? Porra, o livro é muito foda e essa gente ainda defendendo as agendas!

... Viver como os escritores subterrâneos soviéticos deve ter sido muito foda, mas morrer como eles morreram e o legado cultural que nos deixaram é de nos encher os olhos de lágrimas. Não somos dignos de desatar suas sandálias! E fica essa merda de corpo docente marxista... Corpo, porra nenhuma, cadáver! E levando essa juventude idiota, órfã de verbo e advérbio gritando, defendendo agendas!

... Continue lendo, mas não esqueça de escrever. É na escrita que nos distanciamos dos macacos. Ler qualquer um pode, até mesmo um macaco pode simular que lê; mas escrever, ah, escrever é para poucos, não? Um sujeito disse que grandes homens jamais escreveram, mas foram responsáveis pela criação da cultura ocidental. E elencou os dois mestres da oratória que forjaram a nossa cultura: Sócrates e Jesus. Soube que um ancião se levantou da poltrona e já cansado de ouvir tanta besteira, disse: - como chegou a nós o que esses senhores falaram? Parece que o ancião não deixou o sujeito responder e como um último suspiro, disse: - Platão e Paulo, sua anta! As letras de Platão e Paulo! Se eles não tivessem escrito sobre esses monstros da oratória, você e nem ninguém jamais saberiam alguma coisa sobre um e outro!

... hahahahaha, gosto desses sarcasmos! Acaba com qualquer agenda, com qualquer ritual, acaba com a festinha do final... hahahahaha


Tchau, filha.

Que deus.




- Ora, que deus é esse?
- E que deus você esperava que nós crêssemos? Não vê que somos criaturas tão diferentes em relação às demais criaturas do planeta? Buscamos deus fora do planeta: sol, lua, chuva, estrelas, etc. Loucos são os que tentam se afastar desse deus, se aproximam da animalidade, se diminuem e cada vez mais parecem com as outras criaturas desse planeta. Veja que até mesmo quem se diz ateu, o diz por que precisa ver, contemplar um deus bem além dessa realidade, bem além das explicações científicas. Na verdade, nem aceitamos os deuses de outras pessoas, pois o nosso deus tem que ser bem superior que o pensamento das pessoas. Quanto mais “louca” a ideia de deus, mais perto estamos do verdadeiro deus. Fico louco com quem tenta ganhar o favor de deus com oferendas animais, com ofertas financeiras, com velas e etc. Não temos como agradar a deus com as coisas desse planeta, meu caro, você tem que ofertar o além do homem, o além da terra. É por isso que a fé é algo em comum em muitos pensamentos religiosos, talvez em todos. E o que é a fé? A fé é não estar limitado ao planeta, ao tempo-espaço. A fé é o poder que o humano tem de projetar-se além do humano, além de sua finitude. Pode chama-la também de esperança. É isso, meu caro, mas não me venha com essa idiotice de um deus humano demasiadamente humano. Não, isso não é deus é apenas loucura, é o humano tornando-se animal. O deus que nós cremos não pode ser reduzido a nada, por que ele está além do que é redutível. Ele não pode estar num lugar, pois um lugar é algo reduzido. Ele não pode nem mesmo “estar”, pois “estar” é uma condição física. Loucos o que dizem: deus é amor. Não, não, deus não pode ser definido, pois definição implica redução.
- Ora, pare com isso, assim não dá nem para pensarmos na possibilidade de sua existência!

- Isso, é isso, é tão absurdo que parece nem existir!

domingo, 26 de março de 2017

Passatempos




Chegara ao Café bem mais cedo que ela. Esperava. Enquanto esperava, observava as pessoas que frequentavam o Café. Viu um grupo barbudo sentado numa mesa redonda, todos carregavam livros. Viu um outro grupo composto por homens de terno e cada um com diversas Bíblias. Um grupo mais humorado composto por torcedores de um time de futebol. O Café era um microcosmo. Um bom lugar para se observar o comportamento humano, o fluir das ideias. Estava numa mesa para duas pessoas e conseguia acompanhar o desenrolar das três reuniões. E ficou ali esperando por ela, rabiscando seu bloquinho.

Quando ela chegara, o Café já estava vazio. Apenas os dois. A luz baixa. Tocava um jazz antigo. O microcosmo se tornou um local reservado. Ele e ela.

- Já está aqui há muito tempo?
- Sim.

[ Ela sabia que ele gostava de chegar bem cedo e poder gozar da solidão para pensar. Ela achava aquilo estranho, estar sozinho na multidão para pensar ]

- Estava cheio mais cedo?
- Sim, estava.
- E o que você observou?
- O mesmo de sempre.

[ Ela sabia que ele esperava a pergunta. Era um ritual. Ela perguntava e ele começava a falar suas impressões. Ela se sentia uma cobaia de laboratório e ele sempre ria quando ela dizia isso ]

- Tá, o que você viu dessa vez?
- Ah, três grupos que resumem bem quem somos.
- Sei.
- Sério. Quer ouvir?
- Sim, amor. Anotou alguma coisa nesse bloquinho?
- Não, apenas rabiscos.
- Tá, então diz.
- Cheguei aqui bem cedo como de costume. Chegou um grupo de homens barbudos com muitos livros. Era um grupo de estudos econômicos e políticos. Todos eram marxistas.
- Pelas barbas?
- Não, pelos livros e ideias. [ continuou ] Eles falavam alto. Sabe quando alguém quer ser ouvido pelas pessoas que estão próximas, mas não fazem parte da conversa? [ ela concordou com a cabeça ] Então, era isso. Começaram a discutir. Um era mais democrata, outro mais autoritário, outro mais intolerante. Todos marxistas, entende?
[ ela permanecia em silêncio confirmando com a cabeça ] O grupo religioso não era diferente, todos cristãos. No entanto um dizia que Deus salvaria todos, outro dizia que não, mas apenas os eleitos, um outro dizia que fora da Igreja não haveria salvação. Todos cristãos, entende? [ ela sabia que ele gostava da repetição, era professor ] O grupo dos torcedores a mesma coisa. Um dizia que a melhor época do time foi o passado, outro dizia que era o presente e um outro dizia que os dois haveriam de ver a glória do time no futuro. Todos torcedores do mesmo time. Isso é lindo, não acha?
- Sem dúvida, amor.
- Podemos fazer parte do mesmo grupo e ainda assim discordarmos de pontos importantes. Podemos ter as mesmas crenças, mas nos desviarmos de uma ideia ou outra. Podemos torcer pela mesma coisa, mas com compreensões bem diferentes.
- Tá, mas onde fica a verdade nisso tudo?
- Verdade, meu amor? Ninguém busca a verdade, todos querem acreditar. Isso não só acontece com esses três grupos, mas com todos.
- Então, estamos todos perdidos?
- Não, não diria isso. As ideias são nossos passatempos, são aquilo que nos tira do tédio. E eis o milagre, meu amor, não há duas cabeças que pensam cem por cento iguais, sempre haverá um ponto de discórdia, de não alinhamento, entende?

- Sei, acho bem legal essa ideia, mas...

sexta-feira, 24 de março de 2017

Corredor




- Alguém alargou o corredor?
- Não.
- E essas portas vieram de onde?
- Sempre estiveram aí.
- Não mesmo. Aqui só tínhamos o corredor. Nada de portas. Nada desse hall.
- Não, você que só andou entre o corredor e se fechou...
- Jamais, sempre pesquisei pelas paredes do corredor e nada de porta.
- Seja honesto, nunca passou os dedos e sentiu alguma ondulação dessas portas?
- Não, nada de ondulações, talvez a tinta grossa, mas nada de portas.
- Tá, mas elas sempre estiveram aí. Eu entrei por uma delas.
- Quem é você?
- Tá vendo, se não fossem portas você me conheceria, não?
- Não necessariamente. Já vi outras pessoas no corredor.
- E elas entraram por onde?
- Não, ninguém entra, o corredor é infinito, as pessoas vêm e vão.
- Louco!


Saiu por uma outra porta e a bateu para que ele pudesse ouvi-la. Ele chegou até ela, passou a mão. Sentiu ondulações e recuou. Olhou pra um lado e pra outro. Seguiu no corredor.

Uma paixão diferente




a Ferenc Molnar


            Ele nasceu ali, naquele subúrbio, daquela cidade, no meio de gente simples, trabalhadora e sorridente. Nos dias úteis: trabalho e escola. Nos fins de semana: brincar e futebol. Mas ele não era só isso, tinha outra paixão. Paixão estranha para aquela gente, para aquele lugar, para aquele cotidiano. Ele amava os livros.

            O carro de seu pai parou no sinal. Ele sentado atrás com seu irmão. Sua mãe na frente. Olhou para o lado e viu uma grande vitrine repleta de livros. Era uma livraria. Seus olhos brilhavam, seu peito se enchia com as batidas mais fortes do coração. O carro arrancou e a livraria se distanciava.

            Quando andava com a mãe, voltando do mercado, um senhor vendia na rua alguns livros velhos. Ele puxou a mãe a apontou para um livrinho. [ O que foi? ] [ Quanto é moço? ] [ Cinco. ] [ Não sabia que você gostava de ler, filho. ] Ele confirmou balançando a cabeça.


            Em poucos dias, ele já estava imerso nas aventuras de Boka e seus amigos da rua Paulo. Dali em diante, ele não parou mais de ler.

quinta-feira, 23 de março de 2017

Casa Velha [dois]




            Consegui me despedir da Casa Velha, mas deixei as minhas reticências no adeus. Peguei a última órbita que orbitava, mas eu permanecia o mesmo.

 [ e dane-se! O devir de Heráclito! Não sou um rio! Sou o universo todo! ]

A Casa Velha permanecia em mim. Todas as letras que consumi de seus livros formaram e incomodam ainda minha mente. Não tenho como me livrar da Casa Velha, mas precisava ir lá e pelo menos zombar do velho. Na verdade queria ter dito mais, mas como os escritores subterrâneos deixarei aqui o que queria dizer ao velho, para que no futuro alguém possa saber.


[Eu não sou mais o mesmo, velho. Mesmo sendo o mesmo de sempre. Mudei, mesmo mantendo as mesmas ideias. Eu não estava falando por parábolas, não tenho essa habilidade nazarena, mas falava do que em mim era como uma comichão. Ainda é. E a culpa é de cada um, velho. Quem busca culpa fora de si é um covarde mentiroso. Por isso o Batista e seu discípulo pregavam: arrependei-vos! Nosso pecado não é contra o deus hebreu, mas contra nós mesmos. O nazareno queria dizer isso, mas não temos coragem para admitir, então criamos ritos, mitos, lendas, religiões, filosofias. Velho, me despeço de mim mesmo, desse eu-mesmo tosco e covarde para ser o eu-mesmo autêntico. Por isso disse que não sou mais o mesmo, mesmo sendo o mesmo. Talvez você não entenda, talvez você entenda; não importa, enquanto o medo estiver entranhado em você, neles, não adianta. Adeus, Casa Velha! Adeus, velho! Me distancio agora para me manter perto. Zombo da biblioteca e de seus livros da Casa Velha para poder respeitá-los. Zombo do Livro para entende-Lo]

Casa Velha

            




            Cheguei até a entrada. O prédio não mudara nada, apenas uma tinta nova disfarçava sua idade centenária. O pátio continuava acolhedor com suas imensas e temíveis mangueiras. Na época de manga era um perigo ficar debaixo delas. Lembro que certa vez um professor foi atingido em cheio por uma, desmaiou na hora. O que tinha de novo eram as pessoas e as ideias. Essas sempre mudam. Vi um grupo debaixo de uma das mangueiras que lembrou meu grupo do fim dos anos 90 do século passado.


            No prédio principal fui interpelado pelo velho. O velho perguntou quem eu era e respondi que era um ex-aluno. Não lembro de você, disse-me o velho. Nem eu de você, respondi. Sou o atual diretor. Prazer. Prazer. Veio matar a saudade? Não, apenas me despedir. Despedir? Você já não fez isso? Não, não fiz. Precisava fazê-lo. Procura alguém em especial? Não, até porque a despedida não é a alguém, seja vivo, seja morto; mas a esse lugar. Ele é especial? Sim. O que você faz? Nada que tenha a ver com isso aqui, mas foi aqui que tudo começou. Foi aqui que a minha vida começou a dar voltas diferentes. Você quer dizer: “seguir”. Não, velho, quero dizer voltas. A minha vida é uma órbita, ou melhor, várias órbitas. Umas longas, outras menores. Umas se alongando, outras encurtando. Mas o impulso que elas tomaram foi daqui. Mais propriamente da biblioteca desse lugar. Preciso me despedir dela, pois a ultrapassei. Preciso me despedir desse lugar, pois o ultrapassei. Entende, velho? Estou orbitando por lugares diferentes e bem distantes desse lugar. As minhas órbitas não tangenciam mais esse prédio, nem a biblioteca, nem as mangueiras. Arrisco-me nesse momento em perder a sequência de minhas órbitas, mas precisava vir. Tá bom, então se despeça. Tá, adeus... 

quarta-feira, 22 de março de 2017

Liberdade!

     


a Bruna Cunha



        Ela subia a passarela usada para atravessar sobre a linha do trem. Na cabeça um turbilhão de pensamentos. Vinha matutando algumas ideias de suas últimas leituras. Ideias que eram entrecortadas com lembranças do dia-a-dia da escola que trabalha e de algumas discussões no fórum da faculdade de Letras. Fora tirada de seu transe por um sujeito que obrigava as pessoas a lerem a Bíblia. 

- Se você não ler a Bíblia vai para o Inferno! – Vociferava o santo homem. Ela tentou desviar, mas o sujeito insistente continuou a berrar em sua direção: - Se você não ler a Bíblia vai para o Inferno! – Ela apressou o passo e pôde sentir a passarela balançar enquanto passava um trem. No entanto, o sujeito insistente jogou-lhe um papelzinho com suas crenças que caiu sobre seus livros. Ela irritada pegou o papelzinho e começou a amassar e o jogou fora. Um outro santo que ali passava, disse-lhe: - Como você faz uma coisa dessa? Jesus é a salvação, a verdade, a liberdade! Por que você fez isso? – Ela, quase de imediato, respondeu: - Em nome da liberdade! Pela liberdade!


            Desceu a passarela e seguiu marchando livremente. 

terça-feira, 21 de março de 2017

Coração




 a Edmondo Amicis




- Você pode ser um tremendo cafajeste, mas não pode deixar de ter coração!
- Como assim? Cafajeste com coração? Você fala do sentimento ou do órgão?
- Isso mesmo, falo do sentimento que vem do órgão.
- Ah, isso é poesia!
- Não, não é poesia, meu amigo.
- Como não? Os sentimentos vêm do cérebro e não do coração.
- Engano seu, engano seu. Diante de uma injustiça o que lhe dói: a cabeça ou o coração? Onde você sente a pontada? O que acelera: o cérebro ou o coração?
- Ah, mas o coração acelera como reflexo provocado pelo cérebro! Isso é poesia!
- Não, meu amigo, o coração dói e reflete no cérebro e em todos os outros órgãos. Os velhos hebreus tinham razão.
- Tá bom, mas como um cafajeste pode ter coração? Isso não seria contraditório?
- Não, agora quem faz poesia é você. Até mesmo o cafajeste não pode se livrar do coração, pois este está em suas entranhas. Um homem sem coração é um homem morto. Falo de ciência, amigo, de ciência!

segunda-feira, 20 de março de 2017

Deserto




- Alô, pai?
- Oi, filho. Não deu pra eu ir.
- Tudo bem.
- Sua mãe me disse que a igreja tava cheia, né?
- Sim.
- Ela disse que sua pregação foi uma grande benção. Filho, você é uma grande benção!
- Obrigado, pai.
- Quer falar com ela?
- Não, eu...
- Algum problema com as crianças?
- Não, pai, tá tudo bem.
- O que é? Parece triste, o que foi?
- Ah, papai...
- Fala, filho.
- Lembra que você me disse certa vez que em algum momento aquilo poderia acontecer?
- O que, filho? Conversamos tantas coisas.
- Sim, papai, aquilo, lembra? Está acontecendo, pai. Lembro que você me disse que poderia acontecer em qualquer momento, mas é mais comum quando tudo parece estar bem. Quando pensamos que estamos no paraíso, daí, eis que as portas do inferno se abrem. Então, papai, está acontecendo agora. Quando tudo me parece bem, minha família perfeita, meu ministério abençoado, mas as portas do inferno se abriram, papai. Não estou sabendo lidar com isso. Papai!

- Filho, estou aqui, não te abandonei. De certa forma sempre esperei por este dia, estou aqui, filho. Vamos passar por este deserto juntos.

domingo, 19 de março de 2017

Wilde no ônibus





A cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo.
Para ser popular é indispensável ser medíocre.
O.W.




            Subi no ônibus, passei pela roleta e sentei num banco dividindo o espaço com um jovem que usava um lenço na cabeça que numa primeira impressão pensei ser uma moça. Vi que ele estava inquieto e olhava para fora e olhava para mim. Uma ou duas vezes você tolera, mas quando se torna repetitivo aborrece.

- Alguma coisa o incomoda, amigo? – Perguntei.
- Ah, desculpe-me, não é nada... – Respondeu o jovem, mas eu sabia que não pararia ali, pois pude perceber as reticências em sua fala.
- Sabe o que é? – Voltou ele com mais determinação, apesar de ser uma pergunta.
- Não, não sei o que é... – Respondi de forma indiferente deixando bem explícita as reticências. Para muitos, as reticências são fugas para conversas com estranhos, mas para o jovem que dividia o banco do ônibus comigo, não. Elas eram convites para ele derramar sobre mim todas suas inquietudes.
- Eu sou escritor, sabe? Escrevo poesias, contos e estou escrevendo um romance, sei lá, talvez um conto grande. O senhor gosta de ler? – Perguntava agora dando uma analisada em mim.
- Sim, gosto de ler algumas coisas. – Respondi de forma vaga, pois o olhar do jovem agora era de afronta, bem, pelo menos, me parecia.
- Tá bom, então vou te pedir um favor, posso?
- Sim, eu acho... – Rendi-me com certa dúvida.
- Leia esse poeminha que escrevi aqui no ônibus e veja se gosta. – Mostrou-me um papelzinho amassado e pude ver suas unhas grandes e pintadas. A letra era bonita e seguia o ritmo dos versos. Não havia rimas, mas era harmônico. Li com rapidez e reli. Percebia que o jovem dava um sorriso cínico.
- O que foi? – Perguntei colocando o máximo de severidade na voz.
- Calma, eu entendo por que releu. É o ritmo, não? – Disse com certo orgulho e prepotência. Ele sabia que era bom, mas precisava do sentimento dos outros. Ele precisava ver a reação das pessoas diante de suas letras. E sem que eu dissesse, ele emendou: - Sim, preciso do feedback. Quem escreve, escreve para alguém ou para todos, não? Bem, não escrevo para todos e acredito que ninguém consiga isso, mas sei que escrevo algo interessante, concorda? – Perguntou retoricamente e não respondi.
- Tá bom, e daí, o que te incomoda? – Perguntei tentando ser o mais indiferente possível e não aumentar mais ainda o ego do jovem.
- O que me incomoda? Ainda não percebeu? O senhor me parecia uma pessoa inteligente. Percebi isso desde a hora que o vi correndo para pegar o ônibus. Disse a mim mesmo: “se aquele sujeito que me parece uma pessoa razoável sentar ao meu lado saberei que é com ele que tenho que falar”. Daí, você se sentou ao meu lado, não percebe que tudo isso foi armado por uma força maior do que nossas intenções e vontades? – Falava agora de forma livre e apressada.
- Bem, as impressões podem enganar... – Disse tentando aliviar a tensão que via sair de sua respiração.
- Sim, as impressões, mas me refiro ao destino. Não falo de poesia, mas de ciência, mesmo, sabe? – Concordei com a cabeça.
- Eu sou gay. – Confidenciou-me o rapaz.
- E? – Dei-lhe a chance de dissertar.
- E... tudo que escrevo é sempre considerado contra alguma causa. Um poema meu já foi julgado homofóbico. Como? Sou gay, pô! Um conto considerado pornográfico e eu falava de amor. O senhor não sabe o que é ter sua arte recusada, julgada de maneira errada por gente que não sabe escrever um parágrafo! – Falava com certa raiva, mas sem levantar a voz. Talvez por que não queria que as pessoas o ouvissem ou era possuidor de uma habilidade rara.
- Bem, isso não acontece só contigo. Você escreve bem, deve continuar. – Tentei dar um conforto.
- O senhor conhece Wilde? – Agora sua voz embargava.
- Sim, mas... – Sem deixar eu terminar, emendou: - Pois é, então, me sinto um Wilde pós-moderno. Mas eu sei que sou melhor que eles, do que aqueles que me julgam e eles me julgam por inveja. Não aceitam um indivíduo desprovido de causas e bandeiras. Eles não suportam isso. Dizem que você tem que ser engajado, ir para as ruas, quebrar lojas, vandalizar o sistema. Eu tô cagando pra isso, entende? Quero apenas escrever, pô! Se eu conhecesse um lugar onde as pessoas podem ser elas mesmas... – Falava agora com certo cansaço, recostou a cabeça na janela e calou-se.

            Dali em diante mais nenhuma palavra, apenas o silêncio. Um ponto antes do meu me despedi, ele apenas virou os olhos e retornou a cabeça para a janela. Mudo. Desci e esperei o ônibus seguir para vê-lo de novo e quando sua janela passou por mim pude ver seus olhos fixos num vazio, num vazio aterrador. 

sexta-feira, 17 de março de 2017

O viciado

- Por que me olhas assim? Me julgas? Não? Então por que esse olhar? Ah, sei, é o seu jeito, sei... O quê? Me drogo porque não gosto de ver o mundo como ele é. Essa realidade terrível! Prefiro me manter alucinado... sim, alucinado. Não disse alienado, mas alucinado! Prefiro ficar sem luz a ter essa luz que nos cega a vista! Sim, eu sei que não posso estar dopado o dia inteiro, mas eis a minha utopia. Por isso sempre que posso estou dopado e quando não estou, na maioria das vezes, durmo. Entendeu? Não suporto isso que vocês chamam de realidade. O que eu vejo? Ora, vejo o que está por detrás disso tudo. Vejo uma grande floresta e um cheiro tão agradável. Vejo uma linda mulher correndo nua por entre as árvores da floresta. É como se eu voltasse para o início de tudo, entende? Até quando não estou alucinado, meus sonhos são nessa floresta e com essa mulher. Parece que a droga já faz parte de meu ser. E acho isso bem agradável. Ora, me sustento com a pensão do meu velho pai que lutou algumas guerras e que eu não lutarei. Minha mãe também já não existe. No início eu conseguia vê-los, mas agora só me interessa a floresta, o cheiro e a mulher. Não, não tenho filhos, não cometi essa covardia. Sim, todos que têm filhos são covardes, jamais desejaria a um filho a existência. Sim, covardes, não têm coragem de serem sozinhos. Temem a solidão! São os putos! Deixo meu filho e minha filha no esquecimento delicioso do nada. Que filosofia que nada, apenas não sou um vigarista como vocês. Ah, odeio isso! Esses ternos arrumadinhos, essas senhoras chiques, essas crianças barulhentas! Odeio os operários e os patrões! Odeio essa tentativa idiota de dar sentido à existência. Loucos! Sim, pode me chamar de radical, mas todos são loucos! Os sacerdotes? Esses são os piores, pois se dizem testemunhas de uma mentira para sustentar um mundo que eles desejam. É isso. Não, não são só eles, mas todos que defendem uma causa. Loucos! E é assim que me livro disso tudo, entende? Esse pó, essa trilha e pronto, eis a minha fuga...

Cansaço

Ele morava lá em cima. Lá em cima era uma ladeira que dava para uma vila de casas velhas. Uma dessas casas velhas pertencia a sua mãe. Sua mãe enviuvara do segundo marido e herdou a casa. A casa agora pertencia a ele que agora era órfão de mãe também.

Todo dia ele descia com a Bíblia de sua mãe e ia até a praça. Na praça começava a falar sobre o deus da Bíblia. A Bíblia tinha várias anotações e várias cicatrizes por causa do uso. A causa de sua descida era uma promessa feita à mãe e não a fé. Esta não herdara junto com a casa.

Quando a praça desertava de gente, ele subia lá pra cima. Lá de cima olhava a cidade apagando-se. A cidade que parecia tão acesa pela manhã, agora era vencida pelo cansaço. O cansaço não o deixou perceber que a Bíblia continuava em suas mãos. Olhava as mãos, cheias de vincos.

Entrou na casa velha que mantinha muitas memórias. Memórias que se esparramavam pelo chão, pelas paredes. Nas paredes mantinha alguns quadros familiares. Tão familiares que havia alguns personagens que não conhecia. Um desses personagens era um jovem fardado.

Foi até à geladeira e pegou leite. Pegou pão. Pegou presunto e queijo. Pegou a faca. A faca que sua mãe usava para cortar batatas e faze-las com carne seca. Pegou manteiga. Pegou um prato grande que pertenceu a sua vó. Vó que não conhecera, mas sua mãe sempre dizia: - pega aquele prato que era da sua vó!

Preparou um sanduíche e foi pra sala. Na sala sentou-se no sofá próximo da janela. A janela aberta deixava entrar a brisa. Brisa da noite que confortava seu cansaço. Brisa que servia de companhia enquanto comia o sanduíche com leite. Brisa que o acompanhava na leitura.

Na página quarenta e cinco pegou no sono. O sono embalado pela brisa. Brisa que derrubara a xícara com um pouco de leite ainda. Brisa que continuava folheando o livro. Brisa que levantava uma cortina e jogava um jarro com uma planta no chão. Brisa que só não vencia o sono.


Dormiu.

A primeira edição

          Assim se deu o diálogo entre dois velhos amigos: - É apenas um livro. - Não, não é apenas um livro, mas a primeira e...